domingo, 28 de setembro de 2025

Interação entre Depressão e Doença Inflamatória Intestinal



Blog Desvendando a Personalidade
A Neurociência e Neurobiologia do Desenvolvimento Humano

Eixo Cérebro-Intestino by IA


A inflamação crônica do trato gastrointestinal (GI) constitui a principal característica da doença inflamatória intestinal (DII), que engloba a retocolite ulcerativa (RCU) e a doença de Crohn (DC). A prevalência global da DII vem aumentando de forma contínua, com mais de 7 milhões de indivíduos atualmente afetados em todo o mundo. Diversas evidências apontam para uma interação multifatorial na fisiopatogenia complexa da DII, envolvendo predisposição genética, fatores ambientais, microbiota intestinal e respostas imunológicas.

O estudo intitulado “Interplay Between Depression and Inflammatory Bowel Disease: Shared Pathogenetic Mechanisms and Reciprocal Therapeutic Impacts—A Comprehensive Review” foi conduzido por Amalia Di Petrillo, Agnese Favale, Sara Onali, Amit Kumar, Giuseppe Abbracciavento e Massimo Claudio Fantini. Os autores estão afiliados a instituições de destaque na Itália, incluindo o Department of Medical Science and Public Health da University of Cagliari, o Department of Electrical and Electronic Engineering da University of Cagliari e a Child Neuropsychiatric Unit do “A. Cao” Paediatric Hospital, em Cagliari. O artigo foi publicado em 2025 na revista científica Journal of Clinical Medicine, periódico internacional de acesso aberto editado pela MDPI, reconhecido por sua ampla difusão de pesquisas clínicas e biomédicas. Esta postagem do meu blog Desvendando a Personalidade está baseada nessa revisão, trazendo ao público os principais achados e reflexões apresentados pelos autores.

Os principais sintomas clínicos da DII incluem diarreia, sangramento retal, dor abdominal, fadiga intensa e perda de peso, geralmente com um curso remitente-recorrente, caracterizado por períodos de atividade e remissão. De maneira relevante, estudos recentes destacam uma elevada prevalência de comorbidades psiquiátricas em indivíduos com DII, especialmente transtornos ansiosos e depressivos, cuja incidência é significativamente maior em comparação à população geral.

De forma semelhante ao que ocorre na DII, a etiopatogênese do transtorno depressivo maior (TDM) é multifatorial, envolvendo componentes psicológicos, bioquímicos, genéticos e sociais, que interagem em diferentes níveis. Indivíduos com DII apresentam risco aumentado para o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos, como os transtornos depressivos, especialmente em razão da cronicidade da doença e das adaptações progressivas exigidas em termos de enfrentamento e autocuidado. No entanto, estudos apontam que a incidência de sintomas depressivos e ansiosos pode se elevar mesmo nos anos que antecedem o diagnóstico formal da DII, sugerindo que a comorbidade psiquiátrica não se limita a uma reação emocional frente a uma condição crônica, mas pode refletir uma desregulação de eixos fisiológicos comuns a ambas as condições.

Essa hipótese é reforçada por pesquisas que investigam os mecanismos do eixo intestino-cérebro e suas implicações na conexão entre inflamação intestinal crônica e vulnerabilidade aos transtornos depressivos. Alterações fisiopatológicas compartilhadas entre DII e TDM incluem desregulação imunológica, estresse oxidativo exacerbado, acúmulo de metabólitos pró-inflamatórios e mutações genéticas específicas. Tais mecanismos sugerem uma interligação bidirecional entre o intestino e o sistema nervoso central, modulada por vias neuroimunes, metabólicas e neuroendócrinas.

Estudos populacionais demonstram uma prevalência aumentada de transtornos psiquiátricos em pacientes com DII quando comparados à população geral. Em uma coorte retrospectiva nos Estados Unidos com 393 pacientes com DII sem diagnóstico prévio de transtorno mental, a incidência de transtornos depressivos foi de 20,1%. Em dados oriundos de uma ampla pesquisa canadense de saúde, observou-se prevalência entre 14,7% e 16,3% de TDM entre indivíduos com DII. Pesquisas europeias indicam taxas ligeiramente menores, com prevalência de 10,2% na Alemanha e 10% na França. Os índices de ansiedade são ainda mais expressivos, variando de 29% a 35% durante os períodos de remissão e podendo alcançar até 80% durante as fases de exacerbação.

No estudo da coorte de Manitoba (estudo longitudinal canadense que acompanha pacientes com doença inflamatória intestinal para investigar desfechos clínicos, psicológicos e sociais ao longo do tempo), observou-se que a prevalência ao longo da vida de depressão maior em pacientes com DII foi significativamente superior à da população geral (27,2% versus 12,3%), embora não tenha sido observada diferença significativa quanto aos transtornos de pânico (8,0% versus 4,7%). Uma revisão sistemática recente com metanálise, incluindo análises por subgrupo com base em gênero, localização da doença, atividade inflamatória, país e métodos diagnósticos utilizados, confirmou uma alta prevalência de sintomas de ansiedade e depressão entre pacientes com DII: cerca de um terço relatava sintomas ansiosos e aproximadamente um quarto apresentava sintomas depressivos.

Importa destacar, contudo, que a prevalência de depressão em DII pode estar subestimada, uma vez que manifestações clínicas como fadiga, alterações no sono e sintomas somáticos podem se sobrepor aos da própria doença intestinal ou à ansiedade, dificultando o diagnóstico ou contribuindo para atrasos diagnósticos. A complexidade da avaliação dos transtornos depressivos nesse contexto reforça a importância de protocolos padronizados de triagem na prática clínica para uma identificação precoce e manejo adequado das comorbidades psiquiátricas associadas à DII.

A DII e os transtornos depressivos (TDs) compartilham diversas alterações fisiopatológicas, como elevação da proteína C-reativa (PCR) e de citocinas pró-inflamatórias, aumento da permeabilidade intestinal, disbiose e estresse oxidativo, sendo o eixo microbiota-intestino-cérebro considerado o principal elo entre sofrimento psíquico e DII. A DII é uma condição poligênica complexa que afeta principalmente a imunidade associada ao intestino, com estudos de associação genômica ampla (GWAS - genome-wide association studies) identificando mais de 200 loci de susceptibilidade relacionados a vias cruciais para a homeostase intestinal, incluindo secreção de peptídeos antimicrobianos, integridade de barreira, regulação da imunidade inata, estresse oxidativo, transdução de sinais intracelulares e autofagia. Evidências genéticas recentes sustentam que vias imunológicas estão implicadas na etiologia tanto da DII quanto dos TDs.


GENÉTICA MOLECULAR

O primeiro gene de susceptibilidade associado à DII a ser identificado foi o NOD2 (nucleotide-binding oligomerization domain-containing protein 2), que codifica uma proteína do tipo NLR (nucleotide-binding oligomerization domain-like receptor), essencial na detecção de padrões moleculares associados a microrganismos (PAMPs) e na ativação da resposta imune inata. Essa proteína atua no reconhecimento de muramil-dipeptídeo, um componente da parede bacteriana, promovendo a secreção de peptídeos antimicrobianos pelas células epiteliais intestinais e contribuindo para o controle da microbiota do intestino delgado. Três variantes alélicas específicas do NOD2 estão fortemente associadas à forma ileal da doença de Crohn, caracterizando alterações estruturais que comprometem sua função imunorregulatória.

Outros genes com variantes associadas ao risco de DII incluem o HLA (Human Leukocyte Antigen), que codifica proteínas do complexo principal de histocompatibilidade envolvidas na apresentação de antígenos às células T; o IL23R (receptor da interleucina-23), fundamental na diferenciação e manutenção de linfócitos T do subtipo Th17, com papel central na inflamação crônica; o STAT3 (Signal Transducer and Activator of Transcription 3), que integra vias de sinalização citocínica pró-inflamatória e de sobrevivência celular; e o JAK2 (Janus Kinase 2), uma tirosina quinase envolvida na transdução de sinais de diversas citocinas, incluindo interferons e interleucinas, promovendo ativação transcricional de genes pró-inflamatórios.

No contexto dos TDs, estudos de GWAS identificaram 44 polimorfismos de nucleotídeo único (SNPs) associados a esses quadros, revelando o enriquecimento de 19 vias biológicas distintas, muitas delas ligadas à imunidade e à produção de citocinas pró-inflamatórias. Em particular, um estudo de randomização mendeliana apontou um SNP funcional no promotor do receptor de interleucina-6 (IL-6R), que regula a expressão dessa citocina inflamatória, implicada tanto nos níveis séricos de IL-6 quanto na elevação da PCR, além de se correlacionar com maior gravidade dos sintomas depressivos.

Outra linha de pesquisa combinando GWAS com proteômica cerebral humana identificou alterações genéticas no gene P2RX7, que codifica o receptor purinérgico P2X7, responsável por mediar respostas inflamatórias à liberação de ATP extracelular. A ativação desse receptor está diretamente relacionada à indução do inflamassoma NLRP3 (NOD-, LRR- and pyrin domain-containing protein 3), um complexo proteico que promove a liberação de citocinas inflamatórias como IL-1β e IL-18. A ativação aberrante do NLRP3 tem sido implicada tanto na patogênese da DII quanto na neuroinflamação associada aos transtornos depressivos.

Finalmente, uma variante de perda de função no gene PTPN2 (Protein Tyrosine Phosphatase Non-Receptor Type 2) demonstrou ligação com ambas as condições. Este gene regula negativamente a sinalização do receptor de antígeno de células T (TCR) por meio da desfosforilação de quinases associadas, desempenhando funções cruciais na diferenciação de linfócitos T, manutenção da integridade epitelial intestinal e modulação de sinais citocínicos. Modelos murinos com deleção gênica de PTPN2 apresentaram alterações neuroendócrinas significativas, incluindo redução da secreção de insulina e da liberação de neurotransmissores como norepinefrina, dopamina e serotonina (5-hidroxitriptamina), resultando em comportamento semelhante à ansiedade, sugerindo que a disfunção imunometabólica pode ser um elo comum entre inflamação intestinal e disfunção emocional.

Apontando para possíveis conexões genéticas entre DII e os TDs, com ênfase no papel do hipotálamo e do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HPA, do inglês hypothalamic–pituitary–adrenal), a análise de dados genômicos de GWAS revelou correlações genéticas significativas entre DII e depressão, sugerindo a existência de fatores genéticos compartilhados entre essas duas condições e reforçando a hipótese de um elo biológico comum entre inflamação intestinal crônica e transtornos do humor.

Essas correlações foram observadas com destaque para o enriquecimento de variantes genéticas associadas à DII em regiões de cromatina aberta (regiões ativamente transcritas) de neurônios com características hipotalâmicas e organoides intestinais (colonoids), o que sugere a participação do hipotálamo como estrutura central na predisposição genética à DII. Dentre os genes de susceptibilidade identificados em células hipotalâmicas, destacam-se:

  • CREM (cAMP-responsive element modulator): codifica uma proteína reguladora de transcrição que responde ao aumento intracelular de AMP cíclico (cAMP), sendo crucial para a regulação de vias celulares ativadas durante o estresse. Essa modulação inclui a expressão de genes ligados à neuroplasticidade, inflamação e adaptação comportamental ao estresse.

  • CNTF (ciliary neurotrophic factor): é um fator neurotrófico que participa da sobrevivência e diferenciação neuronal. É liberado em situações de estresse agudo e atua como modulador do eixo HPA, sendo fundamental para a síntese de norepinefrina no córtex cerebral. A norepinefrina exerce papel central na resposta adaptativa ao estresse e na modulação de estados afetivos.

  • RHOA (Ras homolog family member A): pertence à família das pequenas GTPases e está envolvido no remodelamento do citoesqueleto de actina, influenciando a morfologia e conectividade dos neurônios. No contexto do estresse psicossocial, RHOA regula a plasticidade dendrítica em regiões cerebrais associadas à motivação e ao sistema de recompensa, sendo implicado na mediação de comportamentos análogos à depressão em modelos animais.

Um estudo recente identificou quatro genes-chave com expressão diferencial associada simultaneamente à DII e ao TDM, por meio da análise integrada de dados transcriptômicos e avaliação proteômica. Os genes identificados incluem:

  • HGF (hepatocyte growth factor): fator de crescimento secretado com propriedades mitogênicas, angiogênicas e imunomoduladoras, capaz de promover regeneração tecidual e reparo epitelial. Está envolvido na sinalização de células-tronco intestinais e na modulação da neuroinflamação em tecidos cerebrais, exercendo papel duplo tanto na barreira intestinal quanto em processos neuroprotetores.

  • SPARC (secreted protein acidic and rich in cysteine): glicoproteína da matriz extracelular envolvida na remodelação tecidual, adesão celular e regulação da resposta inflamatória. Seu aumento está relacionado à ativação de macrófagos e fibroblastos tanto na mucosa intestinal inflamada quanto em tecidos neurais sob estresse oxidativo.

  • ADAM12 (a disintegrin and metalloproteinase 12): enzima metaloprotease que atua na clivagem de proteínas de superfície celular, com papel importante na remodelação da matriz extracelular e na mediação da inflamação crônica. ADAM12 regula o recrutamento de leucócitos e a liberação de citocinas pró-inflamatórias, estando implicada em condições neuroimunes e autoimunes.

  • MMP8 (matrix metallopeptidase 8): também conhecida como colagenase-2, esta enzima é secretada principalmente por neutrófilos e degrada colágeno tipo I durante processos inflamatórios agudos. Sua expressão aumentada em pacientes com DII e TDM está associada à disfunção de barreiras epiteliais e à ativação prolongada da resposta imune inata.
Em consonância com esses achados, análises combinadas de metanálises de GWAS e dados de expressão gênica do projeto GTEx (Genotype-Tissue Expression) identificaram uma arquitetura genética compartilhada entre DII e diversos transtornos neuropsiquiátricos, incluindo a depressão. Genes classicamente associados à DII, como IL23R, NOD2 e ATG16L1 (gene essencial para o processo de autofagia), demonstraram expressão em regiões específicas do cérebro, evidenciando seu envolvimento sistêmico e destacando a relevância da comunicação neuroimune na patogênese das doenças.

Adicionalmente, foi identificado o gene MAGI2 (membrane-associated guanylate kinase, WW and PDZ domain containing 2), também conhecido como S-SCAM (synaptic scaffolding molecule), como um possível gene de susceptibilidade para depressão. O MAGI2 atua como molécula de ancoragem sináptica, envolvida na organização de proteínas de sinalização em junções intercelulares. Sua expressão simultânea em tecidos intestinais e cerebrais reforça o papel funcional do eixo intestino-cérebro e a possibilidade de convergência de vias fisiopatológicas implicadas tanto na inflamação intestinal quanto na disfunção do humor.

Essas evidências reforçam a hipótese de que vias genéticas e moleculares comuns, particularmente aquelas ligadas à resposta ao estresse e à neuroimunomodulação central, contribuem simultaneamente para a vulnerabilidade à DII e aos transtornos depressivos. A interface entre circuitos hipotalâmicos, vias inflamatórias e mecanismos de regulação emocional pode representar um ponto de convergência crucial entre essas duas entidades clínicas.


DISBIOSE

O trato digestivo humano abriga cerca de 100 trilhões de microrganismos, incluindo fungos, bactérias, protozoários e vírus. Mais de 99% dessas bactérias pertencem aos filos Firmicutes, Proteobacteria, Bacteroidetes e Actinobacteria, sendo os gêneros Bacteroides e Firmicutes predominantes na flora intestinal normal do hospedeiro. A microbiota desempenha funções específicas, como a absorção de nutrientes, a melhora da digestão gastrointestinal e a manutenção da integridade da mucosa intestinal.

Existe uma relação simbiótica entre a microbiota intestinal e o hospedeiro, que confere inúmeros benefícios à saúde. A alteração dessa relação, entretanto, desempenha papel central na fisiopatologia da DII. Pacientes com DII ativa apresentam menor quantidade de bactérias produtoras de butirato em comparação a indivíduos saudáveis. Especificamente, os níveis de Bifidobacterium longum, Eubacterium rectale, Faecalibacterium prausnitzii, Roseburia intestinalis e outras bactérias benéficas encontram-se significativamente reduzidos tanto na DC quanto na RCU, enquanto a abundância relativa e a taxa de crescimento de bactérias potencialmente nocivas, como Bacteroides fragilis, estão aumentadas.

Em pacientes com DC, famílias como Christensenellaceae, Coriobacteriaceae e especialmente o clado Clostridium leptum apresentam menor prevalência, ao passo que espécies como Actinomyces spp, Veillonella spp e Escherichia coli são mais frequentes. Já na RCU, observa-se aumento de Eubacterium rectale e Escherichia coli, associado à redução significativa dos níveis de Akkermansia muciniphila, bactéria envolvida na manutenção da camada de muco intestinal e da homeostase epitelial. Embora Christensenellaceae e Clostridium leptum sejam geralmente considerados comensais benéficos relacionados à homeostase intestinal, estudos recentes sugerem que podem apresentar comportamento dual, potencialmente contribuindo para processos inflamatórios em determinados fenótipos ou estágios da DII. Isso evidencia a complexidade das interações entre microbiota e hospedeiro e a necessidade de interpretação cautelosa das alterações microbianas no contexto clínico.

A microbiota intestinal também regula a psicopatologia, como ansiedade e depressão. Diversos estudos e metanálises demonstraram que os gêneros Coprococcus e Faecalibacterium estão reduzidos em pacientes com depressão quando comparados a controles não deprimidos, e que intervenções com probióticos foram eficazes em aliviar sintomas depressivos. De acordo com uma metanálise, pacientes com transtornos psiquiátricos, incluindo os transtornos depressivos, apresentam um padrão transdiagnóstico de disbiose, caracterizado pela depleção de bactérias anti-inflamatórias produtoras de butirato e pelo aumento de bactérias com perfil pró-inflamatório.

Um estudo recente conduzido em uma coorte de 507 pacientes com DII e 75 controles identificou 106 táxons diferencialmente abundantes (DATs) em pacientes com DII em comparação aos controles, além de 21 DATs que distinguiam pacientes com DII e comorbidades psiquiátricas daqueles sem tais condições. Entre esses achados, foram confirmadas reduções de bactérias benéficas como Faecalibacterium prausnitzii, Roseburia intestinalis e Bifidobacterium longum, corroborando observações anteriores. Em contrapartida, níveis mais elevados de Escherichia coli, Veillonella spp e Actinomyces spp, microrganismos reconhecidos por seu potencial pró-inflamatório, foram mais prevalentes em pacientes com DII e transtornos mentais associados. O estudo também demonstrou que pacientes com DII e comorbidades psiquiátricas apresentavam diversidade microbiana significativamente reduzida. Esses resultados sustentam a hipótese de que a disbiose intestinal desempenha papel central na conexão entre DII e transtornos mentais, sugerindo a modulação do eixo microbiota–intestino–cérebro como alvo terapêutico promissor.

Evidências emergentes indicam que metabólitos microbianos, como os ácidos graxos de cadeia curta e os ácidos biliares, exercem papel fundamental na modulação da imunidade intestinal, na manutenção da integridade da barreira epitelial e até mesmo no humor, por meio de seus efeitos sobre o eixo intestino–cérebro. Contudo, a maioria dos estudos existentes concentra-se na composição microbiana em detrimento de sua função, ressaltando a necessidade de investigações adicionais voltadas à dimensão funcional da microbiota.

Avanços recentes também exploraram estratégias inovadoras baseadas em probióticos geneticamente modificados para restaurar o microambiente intestinal. Além disso, a restauração de um estado eubiótico utilizando microrganismos ou o transplante de microbiota fecal (FMT) pode constituir uma alternativa terapêutica em pacientes com transtornos depressivos. Estudos recentes exploraram a eficácia do FMT no tratamento da depressão, e múltiplos trabalhos e relatos de caso sugerem que essa intervenção pode atenuar sintomas depressivos.


ALTERAÇÕES IMUNOLÓGICAS

A vigilância imunológica do intestino contra patógenos e patobiontes envolve múltiplos tipos celulares, como células dendríticas (DC), macrófagos, células natural killer (NK), células T natural killer, células linfoides inatas e linfócitos intraepiteliais (IEL). Integram esse sistema de patrulha a barreira físico-química formada por IEL, células de Paneth e células M (microfold). Na DII, uma resposta imune aberrante contra antígenos derivados da microbiota, normalmente contidos no lúmen, é iniciada por DCs que capturam e reconhecem antígenos projetando dendritos entre células epiteliais. Alternativamente, antígenos alcançam as DCs via células M nas placas de Peyer e nos folículos linfoides. Em seguida, as DCs migram para os linfonodos mesentéricos e apresentam os antígenos às células T naïve (Th0).

A apresentação antigênica na presença de interleucina (IL)-12, ou da combinação IL-1β/IL-6/fator de crescimento transformador beta (TGF-β), polariza as Th0 para perfis pró-inflamatórios Th1 ou Th17, respectivamente, com expansão desses fenótipos às custas de redução relativa de células T regulatórias (Tregs). Th1 e Th17 secretam TNF-alfa, IFN-gama, IL-17A, IL-17F e IL-21, promovendo lesão tecidual e hiperinflamação, especialmente na doença de Crohn. Adicionalmente, IL-4, IL-33, IL-25 e a linfopoietina estromal tímica (TSLP) favorecem a diferenciação para Th2 na RCU, processo também modulável por Tregs. A desregulação dessa rede imune intestinal é central na patogênese da DII.

Em paralelo, indivíduos com depressão apresentam níveis mais elevados de citocinas pró-inflamatórias (IL-1, IL-6, TNF e PCR) em comparação com controles, e evidências pré-clínicas e clínicas implicam Th17 e Tregs nos transtornos depressivos. A “teoria do macrófago da depressão”, proposta há décadas, antecipa esse elo. Tal como no intestino, Th17 e Tregs no sistema nervoso central contribuem para a homeostase da neuroinflamação relacionada ao envelhecimento, à ativação microglial e astrocitária e ao desenvolvimento cerebral durante a gestação.

Muitos trabalhos focam o papel dos ácidos graxos de cadeia curta (AGCC). Eles podem induzir Tregs indiretamente, por DCs e macrófagos ativados por butirato, e também diretamente, ao estimular a proliferação e a função de Tregs via GPR43 e inibição de desacetilases de histonas. Propionato e butirato promovem a diferenciação de Tregs pela indução de FoxP3 dependente de acetilação de histonas; em Tregs humanas ativadas por GPR43, o butirato aumenta a produção de IL-10, ampliando a atividade supressora. Importa notar que, conforme a concentração e o “ambiente” de citocinas, os AGCC podem tanto expandir Tregs e aumentar IL-10 quanto favorecer a diferenciação pró-inflamatória Th1/Th17.

Entre os microrganismos, Bacteroides fragilis, por meio do polissacarídeo A (PSA), induz Tregs, eleva IL-10 e reduz a indução de Th17 de forma dependente de TLR2 (Toll Like Receptor 2), deslocando o eixo Th17/Treg em favor de Tregs. Espécies dos grupos Clostridium IV e XIV estimulam FoxP3 e a geração de Tregs pela produção de butirato e pela modulação da atividade de desacetilases de histona H3.

Clinicamente, níveis periféricos elevados de TNF-alfa e IL-6 são observados em depressão. A relação funcional entre citocinas pró-inflamatórias e sintomas depressivos é reforçada por evidências de que anti-TNFs atenuam comportamentos depressivos em psoríase independentemente da melhora dermatológica ou articular. Em ensaio randomizado, duplo-cego e controlado, uma única infusão de cetamina reduziu significativamente o TNF-alfa sérico em 40 minutos em depressão resistente, acompanhada de melhora sintomática. Ademais, pacientes com TDM e alta ideação suicida exibem IL-6 e PCR séricas superiores às de TDM com menor ideação e controles.

O avanço de terapias biológicas com anticorpos monoclonais que miram seletivamente mediadores inflamatórios desregulados — eficazes tanto na DII quanto em quadros depressivos — sustenta a hipótese de um mecanismo patogenético compartilhado de desregulação imunológica entre esses transtornos.


EIXO HIPOTÁLAMO-HIPÓFISE-ADRENAL (HPA)

O hipotálamo é um componente neurofuncional do sistema límbico que regula a atividade secretora da hipófise, funcionando como elo entre os sistemas nervoso e endócrino. Em resposta ao estresse, o eixo HPA é ativado, levando o hipotálamo a produzir o hormônio liberador de corticotropina (CRH) e a hipófise a secretar o hormônio adrenocorticotrófico (ACTH). O ACTH, por sua vez, estimula o córtex adrenal a secretar cortisol, promovendo a produção periférica e a liberação de citocinas anti-inflamatórias. Além disso, a integração dos sinais de estresse no hipotálamo resulta na secreção de neurotransmissores simpáticos no intestino, evidenciada pela modificação da motilidade, da permeabilidade e da atividade secretora intestinal. A ativação do eixo HPA após exposição ao estresse pode ser um dos principais mecanismos envolvidos no desenvolvimento dos transtornos depressivos (TDs).

Indivíduos deprimidos geralmente apresentam níveis elevados de cortisol ou redução na ativação dos receptores de corticosteroides. Enquanto o estresse agudo desencadeia uma resposta HPA adaptativa e transitória, o estresse crônico leva à desregulação do eixo, caracterizada por hipercortisolemia sustentada, diminuição da sensibilidade dos receptores de glicocorticoides e redução do feedback negativo. Essas alterações têm sido associadas à atrofia hipocampal, à desregulação emocional e ao aumento da vulnerabilidade aos transtornos depressivos. Notavelmente, até 50% dos indivíduos deprimidos exibem hiperativação do eixo HPA.

Em pacientes com DII, o estresse psicológico crônico agrava a inflamação intestinal, possivelmente por efeitos mediados pelo cortisol sobre a integridade da barreira intestinal, a composição da microbiota e a ativação imune da mucosa. A permeabilidade intestinal induzida pelo estresse e a translocação microbiana podem desencadear ativação imune sustentada, perpetuando um ciclo vicioso entre inflamação e transtornos de humor. Além disso, apesar dos níveis sistêmicos elevados de cortisol, em pacientes com DII sob estresse crônico os níveis colônicos de cortisol podem ser insuficientes, contribuindo para a desregulação imune local e inflamação persistente. Clinicamente, altos níveis de estresse percebido têm sido associados a exacerbações da doença de Crohn e podem até preceder seu início, sugerindo que o estresse atua não apenas como consequência, mas também como fator contribuinte na patogênese da DII.

Evidências adicionais da conexão intestino–cérebro foram obtidas em camundongos germ-free, nos quais a microbiota intestinal mostrou-se capaz de regular o ponto de ajuste do eixo HPA e a responsividade comportamental ao estresse. Em contraste, o estresse sustentado leva à disfunção do eixo HPA e à insuficiência de cortisol colônico, o que pode gerar inflamação persistente em hospedeiros suscetíveis.

Por fim, estudos genômicos recentes revelaram um enriquecimento significativo de SNPs associados à DII em regiões de cromatina aberta de neurônios hipotalâmicos com interações promotoras, ressaltando a relevância potencial dessa região cerebral na regulação neuroimune da DII. Esses achados reforçam o papel do hipotálamo na fisiopatologia da doença inflamatória intestinal.


IMPACTO BIDIRECIONAL DAS MEDICAÇÕES NA DII E NOS TD

Os TDs e a DII compartilham múltiplas vias patogenéticas, incluindo desordens imunológicas, disbiose e alterações do eixo HPA. Diversos estudos demonstraram que o direcionamento desses mecanismos melhora tanto a DII quanto os sintomas depressivos.

Impacto das medicações utilizadas na DII sobre os TDs:

Na DII, muitas terapias avançadas baseiam-se no uso de anticorpos monoclonais que bloqueiam seletivamente citocinas liberadas por células inflamatórias. Poucos estudos avaliaram a influência dessas terapias, principalmente os inibidores de TNF, sobre depressão e ansiedade. Pacientes com DII ativa tratados com anti-TNFs apresentaram redução dos sintomas depressivos e ansiosos, além de melhora da atividade da doença. O estudo CHARM (Crohn’s Trial of the Fully Human Antibody Adalimumab for Remission Maintenance) investigou a eficácia do adalimumabe (ADA) na doença de Crohn. Nessa investigação, a escala validada de depressão de autoavaliação de Zung foi utilizada para avaliar sintomas depressivos na população estudada. Ao final da fase de indução, os escores médios da escala de Zung diminuíram significativamente nos pacientes tratados com ADA, correspondendo a uma mudança de depressão leve para valores dentro da faixa normal, enquanto no grupo placebo houve piora. Curiosamente, em uma metanálise de 152 pacientes psiquiátricos com depressão resistente ao tratamento, os anti-TNFs não mostraram efeito na redução dos sintomas depressivos. Em um ensaio clínico randomizado, duplo-cego e controlado, conduzido em pacientes com depressão resistente, observou-se também a ineficácia dos anti-TNFs na redução dos sintomas depressivos.

Entretanto, uma análise de subgrupo revelou que a resposta ao tratamento (definida como redução ≥50% na Escala de Depressão de Hamilton de 17 itens em qualquer momento durante o tratamento) correlacionou-se com níveis elevados de PCR na linha de base [62% (8/13) no grupo infliximabe (IFX) versus 33% (3/9) nos pacientes tratados com placebo (p = 0,19)]. Isso poderia, em parte, explicar por que os anti-TNFs não demonstraram eficácia na redução da sintomatologia depressiva na população geral de pacientes, mas melhoraram os sintomas de depressão em indivíduos com evidência de elevada carga inflamatória.

Além disso, um estudo encontrou que o vedolizumabe (VEDO), um anti-integrina alfa4/beta7, melhorou os sintomas de depressão e ansiedade em pacientes com DII na mesma magnitude que os anti-TNFs. De forma consistente, pesquisadores demonstraram que tanto o VEDO quanto os anti-TNFs promoveram melhora em depressão, ansiedade e qualidade do sono já nas primeiras 6 semanas de tratamento, com manutenção dos benefícios por até um ano.

Por outro lado, dados de dois ensaios clínicos randomizados (RCTs) em pacientes com doença de Crohn tratados com o anticorpo antip40IL12/IL23 ustequinumabe (USTE) e com VEDO identificaram a depressão como o segundo evento psiquiátrico adverso (EPA) mais comum e o mais comum, respectivamente. Embora esse achado pareça contraditório em relação aos dados previamente mencionados, terapias biológicas mostraram-se capazes de atenuar sintomas depressivos em pacientes que já apresentavam sintomas na linha de base, possivelmente por reduzirem a carga inflamatória, corroborando seu papel benéfico reconhecido na depressão mediada por inflamação. Em contrapartida, a depressão é considerada um EPA relacionado ao tratamento em pacientes que não apresentavam diagnóstico psiquiátrico inicial, sugerindo um possível mecanismo distinto pelo qual esses fármacos poderiam atuar a partir de um status psiquiátrico basal diferente.

Outra possibilidade é que os sintomas depressivos sejam inicialmente subestimados durante as fases ativas da DII, por serem frequentemente atribuídos à inflamação intestinal subjacente. Entretanto, uma vez alcançada a remissão clínica após a terapia, a persistência desses sintomas, apesar da resolução da doença intestinal, pode levar os médicos a considerar a presença de uma depressão previamente não reconhecida ou mascarada. Nesses casos, a associação temporal entre o início do tratamento e o surgimento dos sintomas depressivos pode levantar a hipótese de que a própria terapia exerça um papel contributivo. Embora isso não implique uma relação causal direta, permanece como uma possibilidade que merece investigação adicional.


IMPACTO DOS PSICOFÁRMACOS

A associação entre depressão maior e a ativação da resposta inflamatória é bem documentada. De forma semelhante ao observado em pacientes com DII, proteínas de fase aguda, como a PCR, encontram-se elevadas em indivíduos com depressão, enquanto proteínas de fase aguda negativas, como a albumina, estão reduzidas. De fato, o tratamento com antidepressivos leva à queda das concentrações de PCR independentemente da resolução dos sintomas depressivos. Esse achado motivou o desenvolvimento de diversos estudos com o objetivo de investigar os efeitos dos antidepressivos em pacientes com DII. Por outro lado, o diagnóstico de depressão maior é considerado um preditor negativo de remissão clínica após o tratamento com IFX.

Um estudo retrospectivo avaliou a evolução da DII um ano antes e um ano após o início do uso de antidepressivos prescritos para transtornos de humor. Os autores observaram que pacientes tratados com antidepressivos apresentaram menos recaídas de DII e menor necessidade de corticóides no ano anterior ao início da terapia. Resultados semelhantes foram encontrados em um estudo nacional dinamarquês, no qual pacientes em uso de antidepressivos apresentaram taxas de recaída significativamente mais baixas em comparação com aqueles não tratados, sendo esse efeito mais evidente em DC do que em RCU. Além disso, pacientes com DII que utilizavam antidepressivos necessitaram de menos terapias de escalonamento, como corticóides ou anti-TNFs, e tiveram menos hospitalizações do que os não usuários.

Curiosamente, em um estudo de coorte retrospectivo, antidepressivos tricíclicos (ATCs) mostraram benefício em pacientes com DII que apresentavam sintomas abdominais residuais apesar da doença quiescente ou com atividade inflamatória leve. De forma semelhante, a duloxetina, em um ensaio clínico randomizado controlado por placebo, demonstrou eficácia na redução da gravidade de alguns sintomas físicos em pacientes com DII, como a dor abdominal. No entanto, em uma pesquisa online australiana com pacientes com DII em uso de antidepressivos, a maioria dos participantes relatou não ter percebido mudanças na atividade da doença durante o tratamento.

Adicionalmente, um estudo recente com pacientes com DII e controles pareados sem DII mostrou que o uso de antidepressivos foi associado de forma independente a maior frequência de consultas médicas, uso de corticóides e hospitalizações, embora não tenha havido aumento nas complicações associadas à DII nem nas taxas de cirurgia entre os usuários.

Uma revisão sistemática e metanálise recente confirmou que os antidepressivos melhoram os sintomas depressivos e a qualidade de vida em pacientes com DII. Notadamente, os inibidores da recaptação de serotonina e noradrenalina (IRSNs) demonstraram eficácia particular na melhora da depressão, da ansiedade e do bem-estar geral. Esses achados reforçam o potencial dos IRSNs, como a duloxetina e a venlafaxina, no manejo das comorbidades psiquiátricas em pacientes com DII.

Por fim, modelos animais de DII mostraram que medicamentos antidepressivos podem reduzir a inflamação intestinal por meio da regulação de vias neuro-humorais. Apesar das crescentes evidências sobre o possível efeito anti-inflamatório dos antidepressivos na DII, uma revisão Cochrane concluiu que não é possível estabelecer conclusões definitivas e que são necessárias pesquisas adicionais com seguimento mais prolongado.


REFERÊNCIA

Di Petrillo A, Favale A, Onali S, Kumar A, Abbracciavento G, Fantini MC. Interplay between depression and inflammatory bowel disease: shared pathogenetic mechanisms and reciprocal therapeutic impacts—a comprehensive review. J Clin Med. 2025;14:5522. doi:10.3390/jcm14155522



Por Décio Gilberto Natrielli Filho

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