Blog Desvendando a Personalidade
A Neurociência e Neurobiologia do Desenvolvimento Humano
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By DALL-E |
As doenças inflamatórias intestinais (DII), que incluem a doença de Crohn (DC) e a retocolite ulcerativa (RCU), são enfermidades intestinais crônicas e recorrentes, geralmente diagnosticadas no início da vida adulta. Os pacientes apresentam sintomas persistentes ao longo da vida devido à inflamação crônica do trato gastrointestinal, e tanto o curso da doença quanto a resposta ao tratamento podem ser imprevisíveis. Ansiedade e depressão afetam frequentemente indivíduos com DII; uma metanálise recente encontrou prevalência combinada de ansiedade de 31,1% e de sintomas depressivos de 25,2%. Essas comorbidades psiquiátricas podem ter impacto prejudicial na qualidade de vida. Embora a DII por si só já seja de difícil manejo, estudos sugerem que pacientes com ansiedade e depressão concomitantes podem apresentar maior risco de evolução grave da doença. Embora ansiedade e depressão possam resultar da sobrecarga de lidar com uma condição crônica — sendo também comorbidades comuns em várias doenças crônicas, como doenças cardíacas e esclerose múltipla —, a sinalização bidirecional entre o sistema gastrointestinal e o sistema nervoso central, mediada pelo eixo cérebro-intestino, pode aumentar o risco de desenvolvimento dessas comorbidades psiquiátricas em pacientes com DII. Os mecanismos envolvidos incluem sinalização neurológica via nervo vago, sinalização humoral por citocinas pró-inflamatórias e alterações no microbioma intestinal. Apesar da coexistência relatada entre DII, ansiedade e depressão, ainda não está bem esclarecido como essas condições se influenciam mutuamente, em qual ordem ocorrem ou qual a magnitude desse risco. Isso, por sua vez, limita a compreensão da etiologia dessas doenças, a possibilidade de informar os pacientes de maneira precisa sobre seus riscos e dificulta o manejo clínico ideal.
A DC e a RCU compartilham o caráter crônico e inflamatório, mas apresentam diferenças clínicas marcantes. Na DC, a inflamação pode acometer qualquer segmento do tubo digestivo, da boca ao ânus, embora o íleo terminal e o cólon sejam os locais mais frequentes. A inflamação é tipicamente transmural, ou seja, atravessa todas as camadas da parede intestinal, o que favorece complicações como fístulas, estenoses e abscessos. Os sintomas costumam incluir dor abdominal recorrente, diarreia crônica (muitas vezes sem sangue), perda de peso, febre baixa e manifestações extraintestinais, como artrite, lesões cutâneas e oculares. A evolução tende a ser mais heterogênea e imprevisível, com risco maior de cirurgias repetidas ao longo da vida.
Na RCU, a inflamação é restrita ao cólon e reto, progredindo de forma contínua e sem áreas de salto, ao contrário da DC, que apresenta lesões segmentares. O processo inflamatório se limita à mucosa e submucosa, o que reduz a ocorrência de complicações transmuralmente graves, mas aumenta a frequência de sintomas relacionados ao sangramento intestinal. Os pacientes geralmente apresentam diarreia sanguinolenta, urgência evacuatória, tenesmo e cólicas abdominais difusas, além de manifestações sistêmicas durante surtos, como febre e fadiga. O curso clínico alterna períodos de atividade e remissão e casos graves podem requerer colectomia.
O estudo intitulado “The bidirectional risk of inflammatory bowel disease and anxiety or depression: A systematic review and meta-analysis”, publicado em 2023 na revista General Hospital Psychiatry, trouxe evidências significativas a partir de uma análise sistemática e quantitativa da literatura científica. Conduzido por Tania H. Bisgaard, Kristine H. Allin, Rahma Elmahdi e Tine Jess, pesquisadores ligados ao Center for Molecular Prediction of Inflammatory Bowel Disease e ao Department of Gastroenterology and Hepatology da Aalborg University, na Dinamarca, o trabalho reuniu mais de 150.000 pacientes com DII e quase cinco milhões de indivíduos controles, oferecendo uma visão ampla e confiável sobre essa associação.
Nessa revisão sistemática sobre o risco bidirecional de ansiedade e depressão em DII, foram incluídos nove estudos. Sete investigações de base populacional apontaram aumento do risco de ansiedade e depressão após o diagnóstico de DII, enquanto apenas dois estudos de coorte analisaram o risco de desenvolvimento de DII em pacientes com depressão, evidenciando aproximadamente o dobro de risco, e nenhum avaliou especificamente pacientes com ansiedade.
A metanálise de seis estudos de coorte não selecionados, envolvendo 151.908 pacientes com DII e 4.869.239 indivíduos de referência, demonstrou risco 1,5 vez maior de ansiedade e depressão entre pacientes com DII. Esse aumento foi consistente em populações pediátricas e adultas, tanto em casos de doença de Crohn quanto de retocolite ulcerativa, sem distinção entre homens e mulheres.
Os resultados reforçam a existência de uma relação bidirecional entre DII e depressão. Diferentemente de revisões anteriores, que se concentraram apenas na prevalência das comorbidades, esta análise investigou a ocorrência temporal de ansiedade, depressão e DII incidentes, ampliando a compreensão dessa associação. Também foi observada a relação entre saúde mental e evolução da DII: enquanto alguns trabalhos não encontraram correlação entre sintomas depressivos e agravamento da doença, outros identificaram vínculos entre ansiedade, depressão e desfechos desfavoráveis, como exacerbações, intensificação terapêutica e hospitalizações. Esses achados são consistentes com dados que mostram maior prevalência de depressão em pacientes com DII nos anos que antecedem o diagnóstico, sugerindo que a depressão pode estar associada tanto a atraso diagnóstico quanto a um possível papel causal independente.
Ao analisar subgrupos, o risco de ansiedade em pacientes com doença de Crohn diminuiu quando crianças foram excluídas da metanálise, o que pode estar relacionado ao fato de a ansiedade frequentemente surgir na infância ou no início da vida adulta. Em contrapartida, em casos de retocolite ulcerativa, o risco foi semelhante em adultos e crianças, reforçando a hipótese de que os mecanismos de interação entre DII, ansiedade e depressão podem variar conforme o subtipo da doença. Além disso, os dados em populações pediátricas permanecem inconclusivos, já que alguns estudos não encontraram aumento de risco, enquanto outros apontaram associação mais evidente, sobretudo em doença de Crohn. Essas discrepâncias sugerem influência de fatores como composição socioeconômica das amostras e evidenciam a necessidade de mais pesquisas direcionadas a esse grupo etário.
Outro aspecto relevante foi a ausência de diferença entre os sexos. Embora ansiedade e depressão sejam mais prevalentes em mulheres na população geral, o risco adicional conferido pela DII mostrou-se semelhante entre homens e mulheres, indicando que a doença aumenta o risco de forma proporcional em ambos os sexos.
A convivência com uma condição crônica e debilitante como a DII pode, por si só, predispor ao desenvolvimento de ansiedade e depressão. Entretanto, além da sobrecarga psicossocial, mecanismos biológicos relacionados ao eixo cérebro-intestino também parecem desempenhar papel relevante. Entre os processos sugeridos estão elevação de citocinas pró-inflamatórias, alterações morfológicas cerebrais, prejuízos na sinalização do nervo vago, mudanças no microbioma intestinal e fatores genéticos compartilhados.
A principal força deste estudo foi a abrangência da busca bibliográfica, cobrindo mais de três décadas de pesquisas e priorizando a inclusão de estudos de coorte não selecionados, o que amplia a generalização dos achados. A estratégia de busca resultou em mais de seis mil referências, indicando sensibilidade adequada dos critérios. Quanto à qualidade metodológica, quase todos os estudos obtiveram pontuação elevada na Escala de Newcastle-Ottawa, reforçando a consistência dos resultados. Apesar de críticas a esse instrumento, ele permanece uma ferramenta útil para avaliação de qualidade em pesquisas longitudinais, pela clareza de interpretação e pela adaptabilidade a diferentes contextos de investigação.
REFERÊNCIA
Bisgaard TH, Allin KH, Elmahdi R, Jess T. The bidirectional risk of inflammatory bowel disease and anxiety or depression: A systematic review and meta-analysis. Gen Hosp Psychiatry. 2023;83:109–116. https://doi.org/10.1016/j.genhosppsych.2023.05.002
Por Décio Gilberto Natrielli Filho
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