Blog Desvendando a Personalidade
A Neurociência e Neurobiologia do Desenvolvimento Humano
By DALL-E |
Com as evidências neurocientíficas atuais, sabemos que nosso corpo constitui uma unidade indissociável, ou seja, pensamos em referenciais de abordagens biopsicossociais e psicossomáticas que superam dualismos como corpo e mente, funcional e orgânico, físico e psíquico, ou qualquer outra forma de cisão conceitual do nosso organismo. Contudo, preservando a literatura e com foco na didática, sempre encontraremos textos que descrevem o processo de somatização humana como um fenômeno psíquico, sem evidências clínicas que justifiquem um processo de disfunção orgânica que poderia ser detectado pelos marcadores (ou seja, exames) disponíveis até o momento.
Os sintomas somáticos são parte da experiência cotidiana na vida de crianças e jovens. Em muitos casos, sintomas somáticos funcionais (SSF) — novamente, na literatura as nomenclaturas mantêm essa cisão conceitual —, em crianças saudáveis, não são persistentes nem incapacitantes; tendem a ser atribuídos a mudanças biológicas transitórias ou a estressores psicológicos cotidianos não orgânicos, e não levam à busca por ajuda médica (GARRALDA & RASK, 2015).
Portanto, a somatização nem sempre indica um transtorno psiquiátrico. Ela varia em gravidade e pode até ser uma parte normal do desenvolvimento infantil, representando uma forma natural de responder ao estresse. Essa tendência geralmente diminui com o crescimento da criança, à medida que ela desenvolve novas maneiras de lidar com essas situações. Considera-se que a somatização constitui um transtorno mental quando os sintomas físicos têm grandes impactos, resultando em consequências como numerosas faltas escolares, busca frequente por atendimento médico para investigar os sintomas, submissão a muitos exames invasivos ou significativo sofrimento emocional. Embora em muitos casos a somatização se resolva por si só, intervenções mais específicas podem ser necessárias nos casos mais graves (CASELLA & MORIKAWA, 2021).
O conceito de somatização é central para entender as ramificações psicológicas dos SSF e dos transtornos somatoformes e relacionados. O termo ganhou popularidade para descrever uma constelação de características clínicas e comportamentais que envolvem: primeiro, uma tendência para experimentar e comunicar sofrimento por meio de sintomas somáticos que não são justificados por achados patológicos; em segundo lugar, esses sintomas seriam atribuídos a doenças clínicas; e terceiro, eles levam à busca por ajuda médica (GARRALDA & RASK, 2015).
Segundo Casella & Morikawa (2021), ao lidar com casos de somatização e dissociação, é crucial evitar reforçar a divisão entre "mente" e "corpo", uma distinção que foi marcante no modelo médico ocidental. Tradicionalmente, na cultura dos pais, os sintomas físicos são percebidos como legítimos, isentando o paciente de responsabilidades, como a frequência escolar, enquanto que o sofrimento psíquico, visto como algo separado do corpo, enfrenta estigmas e é frequentemente desvalorizado. Essa perspectiva contribui para perpetuar os casos de somatização. As abordagens modernas de saúde tratam-na como uma entidade única, sem a separação artificial entre mente e corpo. Atualmente, reconhece-se que os fenômenos "psicológicos" também são biológicos (por exemplo, apaixonar-se provoca alterações químicas no corpo) e que cada processo "biológico" envolve uma experiência psicológica subjetiva e única. Superar esse dualismo é desafiador, mas essencial no manejo desses casos.
Na psiquiatria da infância e adolescência (PIA), termos usados para esses quadros incluem o transtorno de ajustamento, transtorno somatoforme, transtorno dissociativo ou conversivo e "neurastenia" (já obsoleto). Em reumatologia pediátrica, as condições incluem "fibromialgia juvenil", "síndrome de dor benigna crônica" e dores de crescimento. A cardiologia pediátrica foca em "dor torácica não cardíaca". A gastroenterologia pediátrica aborda condições de "dor abdominal funcional", síndrome do intestino irritável, "dispepsia funcional" e "síndrome de vômito cíclico". Na infectologia pediátrica, são destacadas a síndrome da fadiga crônica e a "encefalomielite miálgica". Na pneumologia pediátrica, o foco está na síndrome de hiperventilação. A neuropediatria apresenta condições como cefaleia tensional e crises pseudoepilépticas, enquanto a oftalmologia discute "perda visual não orgânica" e "síndrome da menina escolar amblíope". Cada categoria reflete como diferentes especialidades médicas identificam e classificam esses transtornos (GARRALDA & RASK, 2015).
EPIDEMIOLOGIA
A somatização, especialmente na forma de queixas recorrentes de dor, é bastante prevalente na infância. Entre 2 e 10% das crianças relatam dores que aparentemente não têm "explicação médica", e em 25 a 50% dos casos de crianças com alguma queixa física, identificam-se fatores psicológicos associados. Dores abdominais recorrentes funcionais representam 2 a 4% das consultas pediátricas. Esta condição é encontrada em 7 a 25% das crianças em idade escolar, sendo a forma mais comum de dor funcional entre os pré-escolares. A prevalência de transtorno somatoforme propriamente dito é menos conhecida devido à falta de estudos populacionais abrangentes, à diversidade de classificações utilizadas e às significativas mudanças nos critérios diagnósticos entre o DSM-IV e o DSM-5, que complicam as comparações. Sintomas somatoformes e dissociativos são universais e ocorrem em todas as culturas, embora aspectos locais possam influenciar suas manifestações (CASELLA & MORIKAWA, 2021).
QUADRO CLÍNICO
Os transtornos somatoformes geralmente não são claramente expressos por crianças em idade pré-escolar devido à falta de experiência e conhecimento necessário para compreender e descrever crenças sobre doenças. A procura por ajuda médica, nesse contexto, fica a cargo dos pais até que as crianças atinjam a adolescência. Contudo, sintomas indicativos de somatização têm sido observados por pais em crianças de apenas 5 a 7 anos. As manifestações mais comuns nessas idades incluem: (i) dor, particularmente episódios recorrentes de dor abdominal intensa, dores de cabeça ou outras dores que ocorrem ao menos uma vez por mês e muitas vezes semanal ou diariamente; (ii) fadiga ou exaustão severa e incapacitante, com duração mínima de três meses, frequentemente estendendo-se por mais de seis meses; e (iii) perda de mobilidade ou de percepções sensoriais habituais, e/ou ocorrência de pseudoconvulsões (GARRALDA & RASK, 2015).
Segundo o DSM-5-TR, entre crianças, os sintomas mais frequentes incluem dor abdominal recorrente, cefaleia, fadiga e náusea. É mais comum que crianças apresentem um único sintoma proeminente em comparação com adultos. Embora as crianças menores possam relatar queixas somáticas, raramente expressam preocupações com "doenças" propriamente ditas antes da adolescência. A maneira como os pais respondem ao sintoma desempenha um papel crucial, pois pode influenciar o grau de sofrimento da criança. São os pais que frequentemente interpretam os sintomas e decidem sobre o tempo de afastamento escolar e a procura por assistência médica.
Dor abdominal funcional em crianças caracteriza-se por ser intensa, recorrente, difusa ou localizada ao redor do umbigo, geralmente exacerbada durante o dia e aliviada à noite ou durante as férias escolares. Esses episódios podem vir acompanhados de vômito, dor de cabeça e letargia, fazendo com que a criança aparente palidez e mal-estar, o que muitas vezes fortalece a percepção de uma possível patologia orgânica entre os familiares. As dores de cabeça, por outro lado, são frequentemente descritas como cefaleias tensionais, mas ocasionalmente podem coexistir com crises de enxaqueca. É comum que existam outras queixas de sintomas físicos menos evidentes, que frequentemente acompanham mudanças de humor e significativa redução do contato social e frequência escolar. Gastroenterologistas tentam classificar crianças com sintomas gastrointestinais não explicados em categorias específicas como vômito, evacuação e dor (GARRALDA & RASK, 2015).
A síndrome da fadiga crônica (SFC) é caracterizada por uma fadiga física e mental extrema, que incapacita o indivíduo após esforços mínimos e não se alivia com repouso, persistindo por pelo menos seis meses, embora em crianças considere-se adequado um período de três meses. A condição é acompanhada por uma diminuição acentuada na funcionalidade, frequentemente com dores de cabeça, interrupções no sono, dores musculares ou outras dores e variações no estado de ânimo. Muitas vezes, a SFC inicia-se com sintomas semelhantes aos da gripe ou mononucleose, embora o início possa ser também gradual e oscilante. A fibromialgia juvenil, descrita como um distúrbio médico funcional, assemelha-se aos transtornos de dor somatoforme. Define-se como uma condição crônica de dor de causa desconhecida, destacada por dor musculoesquelética generalizada, problemas de sono, depressão e fadiga, sem sinais objetivos de artrite ou alterações nos exames laboratoriais (GARRALDA & RASK, 2015).
Não raro, as crianças relatam dores de garganta frequentes, acompanhadas por sensibilidade nos gânglios linfáticos, anorexia, náuseas e tonturas. Os transtornos dissociativos e conversivos caracterizam-se pela perda parcial ou total das sensações ou movimentos corporais. Nas crianças, são mais frequentes a perda ou alteração da função motora e as pseudoconvulsões. Outras manifestações podem incluir perda de visão, audição, sensibilidade, consciência, episódios de fuga ou mutismo. Tais sintomas geralmente são provocados por um evento traumático e tendem a se resolver após algumas semanas ou meses. A hipcondria é marcada por uma preocupação constante com o medo de ter uma doença grave. Essa preocupação decorre da interpretação errônea de sensações corporais que são percebidas como indicativos de uma condição médica séria, levando a uma busca contínua por reasseguração médica. Tradicionalmente considerada como tendo início na idade adulta, novas evidências sugerem que as características cognitivas e comportamentais associadas a essa condição também se manifestam em crianças e adolescentes (GARRALDA & RASK, 2015).
FATORES DE RISCO
Os fatores de risco para transtornos somatoformes em jovens abrangem aspectos temperamentais desde a infância e estilos de enfrentamento que influenciam a expressão e o manejo de emoções e estresses. Evidências apontam que características temperamentais como insegurança, internalização, perfeccionismo e consciência, presentes desde o primeiro ano de vida, podem predispor a eventos de somatização mais tarde. Estilos de enfrentamento que internalizam emoções tendem a canalizar o sofrimento emocional através de sintomas físicos, especialmente sob estresse agudo ou padrões crônicos. Outros traços comportamentais relacionados incluem timidez, pessimismo e abordagens passivas ou evasivas, que aumentam o risco de desenvolvimento de sintomas somáticos e de sua perpetuação devido a exigências acadêmicas e familiares, bem como à capacidade subconsciente de escapar dessas pressões assumindo o papel de "doente". Além dos aspectos temperamentais e comportamentais, fatores ambientais e experiências de vida, como adversidades familiares e escolares, também desempenham um papel crucial. Estresse acadêmico, bullying, e experiências domésticas desafiadoras como conflitos ou perdas familiares são associados ao aumento da somatização entre os jovens. Traumas na infância, incluindo abusos e negligências, são particularmente significativos, afetando o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal e exacerbando a resposta ao estresse futuro. Estes traumas induzem uma maior consciência corporal e hiperexcitação, o que pode levar a uma dissociação e dificultar a aderência ao tratamento (CASELLA & MORIKAWA, 2021).
CLASSIFICAÇÕES DIAGNÓSTICAS
Como parte das atividades planejadas para a aprovação da CID-11 pela Assembleia Mundial da Saúde, a Organização Mundial da Saúde, por meio de seu Grupo Consultivo Internacional, estabeleceu o Grupo de Trabalho sobre Transtornos de Estresse Somático e Dissociativos. Entre outras tarefas, esse grupo foi encarregado de propor mudanças na seção de transtornos somatoformes da CID-10. O Grupo de Trabalho propôs uma nova categoria, significativamente simplificada, denominada transtorno de estresse corporal, que substitui todas as categorias da CID-10 dentro do grupo de transtornos somatoformes (F45.0) e, em grande medida, a neurastenia (F48.0), unificando essas condições sob uma única categoria. A única condição somatoforme da CID-10 que não foi incluída no transtorno de estresse corporal é a hipocondria (F45.2). Entre as principais diferenças metodológicas entre a CID-11 e o DSM-5 está a terminologia usada para descrever os transtornos. O DSM-5 continuou a usar o termo "somático", enquanto a CID optou por eliminar completamente essa designação. A escolha de uma nomenclatura que exclui "somático" pode ser mais bem recebida por pacientes e médicos de atenção primária, uma vez que reduz o potencial para conotações negativas e interpretações errôneas. No DSM-5, a hipocondria ainda faz parte da categoria de Transtornos de Sintomas Somáticos e relacionados, mas a CID-11 reclassificou a hipocondria sob os transtornos obsessivo-compulsivos e seus distúrbios correlatos. Essa mudança no DSM-5 se justifica por estudos que apontam uma frequente coocorrência de hipocondria com o transtorno de somatização, além de um padrão cognitivo comum entre ambos. Por outro lado, a abordagem da CID-11 baseia-se em pesquisas que ligam a hipocondria a padrões de cognição e comportamento repetitivo, observáveis em exames de imagem cerebral que revelam padrões específicos de ativação neural. Adicionalmente, estudos indicam que a hipocondria pode responder a tratamentos típicos para transtornos obsessivo-compulsivos, diferentemente dos casos de somatização. (GUREJE & REED, 2016).
O DSM-5 reestruturou a antiga categoria de "Transtornos somatoformes" do DSM-IV, criando a nova categoria de "Transtornos Somáticos e Transtornos Relacionados" para facilitar o uso clínico através de uma abordagem mais clara e prática. Essa nova classificação inclui várias condições onde sintomas físicos significativos e o sofrimento associado são centrais. Entre eles está o Transtorno de sintomas somáticos, marcado por preocupações desproporcionais em relação à gravidade dos sintomas, que variam de dor a fadiga, podendo ou não estar ligados a uma doença médica de base. Outra condição é o Transtorno de ansiedade de doença, caracterizado por um medo excessivo de ter uma doença grave, levando o paciente a comportamentos de checagem constante ou evitação de cuidados médicos, com sintomas somáticos mínimos ou ausentes. O Transtorno conversivo, também conhecido como de sintomas neurológicos funcionais, envolve sintomas motores ou sensoriais que não correspondem a achados clínicos, frequentemente desencadeados por estresse ou traumas. Há também os Fatores psicológicos que afetam condições médicas, onde comportamentos ou estados emocionais exacerbam problemas de saúde existentes. Por fim, o Transtorno factício abrange casos onde indivíduos simulam doenças ou se autoinfligem danos para assumirem o papel de doente, podendo também ocorrer em terceiros, especialmente em crianças, uma condição antes conhecida como transtorno factício por procuração.
Na CID-11, a classificação de transtornos relacionados ao sofrimento corporal é detalhada em categorias específicas. O Transtorno da angústia corporal (6C20) envolve sintomas corporais angustiantes e uma preocupação exagerada com esses sintomas, frequentemente levando a contatos repetidos com profissionais de saúde. Mesmo quando exames médicos confirmam ou descartam outras condições, essa preocupação persiste, normalmente caracterizando-se por múltiplos sintomas persistentes ou, ocasionalmente, um único sintoma recorrente, como dor ou fadiga. Por outro lado, a Disforia da integridade corporal (6C21) é marcada por um desejo intenso e contínuo de adquirir uma deficiência física significativa, como a amputação de um membro. Esse desejo gera desconforto ou sentimentos de inadequação e pode ter implicações negativas no funcionamento social ou pessoal da pessoa, às vezes até colocando sua vida em risco. Além dessas, existem categorias para outros transtornos especificados de sofrimento ou experiência corporal (6C2Y) e distúrbios não especificados da angústia ou experiência corporal (6C2Z), que abrangem condições similares que não se encaixam precisamente nas descrições anteriores.
O estudo de Janssens et al. (2014) identificou que as principais comorbidades psiquiátricas associadas à persistência de SSF em adolescentes incluem sintomas depressivos e a condição de ser do sexo feminino. Adolescentes que apresentam depressão têm maior probabilidade de persistência desses sintomas somáticos. Além disso, ser do sexo feminino também foi associado a uma maior persistência dos FSS, indicando uma susceptibilidade específica de gênero neste contexto. Curiosamente, outros fatores como ansiedade, diversidade de sintomas, proteção excessiva dos pais e absenteísmo escolar não foram preditivos significativos para a persistência de FSS neste estudo.
TRATAMENTOS
Metanálises demonstraram que os tratamentos psicológicos são eficazes para reduzir a carga de sintomas, a incapacidade e a ausência escolar em crianças e adolescentes que sofrem com sintomas somáticos funcionais, como dores abdominais funcionais, fadiga, cefaleia tensional e dores musculoesqueléticas. Embora a variação dos efeitos observados entre os estudos analisados tenha sido significativa, fatores como tipo e duração dos sintomas, idade dos pacientes e dose de tratamento não explicaram essas diferenças de forma conclusiva (BONVANIE et al., 2017).
Estudos anteriores sugeriram que tratamentos psicológicos presenciais podem reduzir a carga de sintomas e incapacidades em crianças com dores crônicas, ainda que esses benefícios, exceto em casos de cefaleia, frequentemente não persistam após o término do tratamento. Em contraste, os dados de Bonvanie et al. (2017) mostraram que as melhorias trazidas pelas terapias psicológicas em sintomas somáticos funcionais foram mantidas no seguimento, sugerindo que essas intervenções são especialmente eficazes para sintomas somáticos funcionais em comparação a dores crônicas relacionadas a condições bem definidas, como a artrite reumatoide juvenil. Os efeitos observados após o tratamento em crianças com sintomas funcionais foram, inclusive, ligeiramente superiores aos reportados em adultos com sintomas somáticos, possivelmente indicando uma maior receptividade das crianças e adolescentes às intervenções psicológicas, ou então refletindo sintomas menos crônicos e graves nesse grupo etário.
Contudo, ainda é incerto quais perfis de pacientes se beneficiam mais desses tratamentos. Características como tipo de sintoma, idade, dose e duração do tratamento não apresentaram impacto consistente nos resultados. Revisões mostraram que doses maiores podem ser eficazes para cefaleia em crianças e para dor lombar em adultos, mas a dose ideal ainda não foi estabelecida. Tratamentos psicológicos à distância foram eficazes na redução de sintomas, mas não na diminuição de incapacidades, ao contrário dos tratamentos presenciais, que trouxeram benefícios para ambos. É importante notar que esses achados foram baseados em apenas seis estudos (da meta-análise de Bonvanie et al., 2017), e novas pesquisas podem revelar informações adicionais. Observou-se também que habilidades do terapeuta e frequência do tratamento, ao contrário de carga de sintomas e qualidade do estudo, tiveram impacto relevante nos resultados. A falta de resultados claros pode parecer contraintuitiva, sugerindo que a intervenção breve poderia ser suficiente para qualquer criança com sintomas funcionais. Porém, a dificuldade em identificar fontes específicas de variação entre estudos é atribuída, em grande parte, à diversidade metodológica: cada estudo incluiu diferentes combinações de participantes e tratamentos, e muitos não especificaram a gravidade dos sintomas ou a presença de comorbidades. Isso significa que, ao analisar um fator específico, muitos outros também variavam, o que contribuiu para os resultados inconclusivos (BONVANIE et al., 2017).
Sintomas leves e de curta duração, como náuseas que aparecem durante o período de adaptação a um novo ambiente escolar, geralmente resolvem-se sem intervenções. Entretanto, em casos mais persistentes, intervenções psicossociais, como técnicas de relaxamento e abordagens cognitivo-comportamentais, podem ser benéficas. A terapia cognitivo-comportamental (TCC) é eficaz para reduzir a percepção de ameaça dos sintomas funcionais, promovendo estratégias de enfrentamento saudáveis, como aceitação e autoencorajamento, e desencorajando comportamentos passivos, como a evitação de desafios. Essa abordagem também fortalece o senso de competência e autovalorização da criança, incentivando comportamentos saudáveis.
É crucial identificar e, quando possível, mitigar os fatores estressantes que contribuem para o surgimento e manutenção desses sintomas. É também essencial orientar as famílias a não reforçar a percepção da criança como doente crônico, promovendo o retorno precoce às atividades normais e evitando exames desnecessários. A somatização pode levar a um absenteísmo escolar significativo, e a evitação da escola pode perpetuar os sintomas. Por isso, é importante manter a criança integrada ao ambiente escolar, mesmo que ela não participe ativamente das aulas durante os episódios sintomáticos. Em casos mais sérios, pode ser necessário desenvolver um plano para a reintegração escolar gradual.
Frequentemente, é recomendável que os pais de crianças com somatização recebam orientação ou participem de abordagens terapêuticas familiares, pois muitas vezes a ansiedade parental pode exacerbar os sintomas da criança. O tratamento deve focar na melhora da funcionalidade, não necessariamente na eliminação completa dos sintomas. Consultas regulares com um médico de confiança podem fortalecer a aliança terapêutica e evitar intervenções invasivas desnecessárias. A psicoeducação dos pais e pacientes é crucial; deve-se reconhecer a realidade dos sintomas da criança, enfatizando que, apesar de reais, são inofensivos e muitas vezes mais relacionados a questões psicológicas do que físicas. Assim, deve-se entender que emoções e estressores, mesmo que pareçam menores para um adulto, podem ser significativos para a criança (AGARWAL et al., 2019).
Na prática médica, o emprego de medicamentos psicotrópicos geralmente é limitado ao tratamento de comorbidades associadas. Comumente, antidepressivos são utilizados para manejar condições como síndrome do intestino irritável e fibromialgia em adultos. Contudo, uma revisão realizada pela Corchrane Database of Systematic Reviews, por Kleinstauber et al. (2014), não conseguiu identificar evidências robustas que apoiem o uso de psicofármacos para tratar quadros de somatização. A literatura sobre o uso desses medicamentos em crianças e adolescentes com condições funcionais é ainda mais limitada.
Os resultados da revisão de Kleinstauber et al. (2014) demonstraram apenas evidências de baixa ou muito baixa qualidade para a eficácia de intervenções farmacológicas em transtornos somatoformes em adultos. Essas evidências são limitadas e referem-se apenas a duas classes específicas de intervenções farmacológicas: antidepressivos de nova geração (ANGs) e produtos naturais (PNs). Comparações baseadas em placebo mostraram eficácia consistente apenas para PNs em diversos resultados primários e secundários. Para ANGs, as evidências foram muito inconsistentes entre os resultados. Os achados não mostraram diferença entre os antidepressivos tricíclicos (ATCs) e o placebo na severidade dos sintomas médicos inexplicados, mas não havia evidências suficientes para avaliar outros resultados. Um número pequeno de estudos comparou diferentes medicações para transtornos somatoformes. Os resultados desses estudos sugeriram que os ANGs parecem ser tão eficazes quanto os ATCs; no entanto, a qualidade das evidências era baixa a muito baixa. Além disso, os resultados mostraram que diferentes ANGs parecem ser igualmente eficazes para diversos resultados.
Finalmente, meta-análises de estudos que comparavam inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRSs) com tratamentos combinados de ISRSs e antipsicóticos sugerem que pode haver um benefício de uma combinação de medicamentos apenas para reduzir a severidade dos sintomas médicos inexplicados e da depressão. Para outros resultados, como sintomas de ansiedade, nenhum efeito do braço de estudo foi identificado. Novamente, as evidências eram de qualidade baixa ou muito baixa (KLEINSTÄUBER et al., 2014).
No geral, esses resultados devem ser considerados com cautela, dada a presença de várias limitações associadas aos estudos incluídos, como a imprecisão dos dados (devido ao pequeno número de estudos e ao tamanho das amostras contribuindo para cada comparação), o viés possivelmente produzido por fatores culturais e a inclusão de um alto número de estudos asiáticos, ou a falta de estudos com avaliações de acompanhamento. Além disso, os efeitos significativos do tratamento com antidepressivos devem ser equilibrados contra as taxas relativamente altas de efeitos adversos. Para pessoas que experienciam sintomas somáticos sem causas médicas identificadas, os efeitos adversos dos medicamentos podem ter efeitos amplificadores nas percepções dos sintomas. Adicionalmente, as taxas de desistência, como indicadores de baixa aceitação do tratamento, foram bastante altas para os diferentes antidepressivos comparados com PNs (KLEINSTÄUBER et al., 2014).
REFERÊNCIAS
Agarwal V, Sitholey P, Srivastava C. Clinical practice guidelines for the management of dissociative disorders in children and adolescents. Indian J Psychiatry. 2019; 61(Suppl 2):247-253. doi:10.4103/psychiatry.IndianJPsychiatry_493_18.
American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. 5th ed. Washington, DC: American Psychiatric Association; 2013.
American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Text Revision (DSM-5-TR). 5th ed. Washington, DC: American Psychiatric Association; 2022.
Bonvanie IJ, Kallesøe KH, Janssens KAM, Schröder A, Rosmalen JGM, Rask CU. Psychological interventions for children with functional somatic symptoms: a systematic review and meta-analysis. J Pediatr. 2017; 187:272-281. doi:10.1016/j.jpeds.2017.03.017.
Casella CB, Morikawa M. Somatização e dissociação na infância e adolescência. In: Miguel EC, Bassitt DP, Guimarães-Fernandes F, editors. Clínica psiquiátrica: as grandes síndromes psiquiátricas. Vol. 2. 2nd ed. Barueri (SP): Manole; 2021.
Garralda ME, Rask CU. Somatoform and related disorders. In: Thapar A, Pine DS, Leckman JF, Scott S, Snowling MJ, Taylor E, editors. Rutter's child and adolescent psychiatry. 6th ed. Chichester (UK): John Wiley & Sons, Ltd; 2015.
Gureje O, Reed GM. Bodily distress disorder in ICD-11: problems and prospects. World Psychiatry. 2016; 15(3):291-292. doi: 10.1002/wps.20353.
Janssens KA, Klis S, Kingma EM, Oldehinkel AJ, Rosmalen JG. Predictors for persistence of functional somatic symptoms in adolescents. J Pediatr. 2014;164(4): 900-905. doi:10.1016/j.jpeds.2013.12.003.
Kleinstäuber M, Witthöft M, Steffanowski A, van Marwijk H, Hiller W, Lambert MJ. Pharmacological interventions for somatoform disorders in adults. Cochrane Database Syst Rev. 2014; 2014(11):CD010628. doi: 10.1002/14651858.CD010628.pub2.
World Health Organization. International Classification of Diseases. 11th ed. Geneva: WHO; 2018.
Por Décio Gilberto Natrielli Filho
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Contribua para o Blog Desvendando a Personalidade !!! Deixe sua mensagem !!!