![]() |
By DALL-E |
A semaglutida é um medicamento pertencente à classe dos agonistas do receptor de GLP-1 (glucagon-like peptide-1), desenvolvido inicialmente para o tratamento do diabetes mellitus tipo 2. Seu mecanismo de ação envolve a estimulação da secreção de insulina em resposta à ingestão de alimentos, além de reduzir a secreção de glucagon e retardar o esvaziamento gástrico, o que contribui para o controle glicêmico. Além de sua indicação principal no manejo do diabetes tipo 2, a semaglutida tem se destacado no tratamento da obesidade e controle de peso, sendo aprovada para uso em pacientes com índice de massa corporal (IMC) elevado, com ou sem comorbidades associadas, como hipertensão arterial e dislipidemia. Estudos recentes também têm investigado seu potencial em outras condições clínicas, como o uso em transtornos metabólicos e a redução de riscos cardiovasculares em pacientes com diabetes e obesidade.
No artigo Associations of semaglutide with incidence and recurrence of alcohol use disorder in real-world population, publicado na revista Nature Communications por Wang et al. (2024), observou-se um possível efeito benéfico da semaglutida tanto na incidência quanto na recorrência do transtorno por uso de álcool (TUA) em populações "do mundo real". A pesquisa foi realizada em colaboração entre várias instituições, com destaque para a Case Western Reserve University School of Medicine, localizada em Cleveland, Ohio, nos Estados Unidos, que abrigou diversos centros envolvidos no estudo, como o Center for Science, Health, and Society, o Center for Community Health Integration e o Center for Artificial Intelligence in Drug Discovery. Além disso, o estudo contou com a participação do National Institute on Drug Abuse, que faz parte do National Institutes of Health, em Bethesda, Maryland, e do Center for Clinical Informatics Research and Education, parte do sistema de saúde MetroHealth, também em Cleveland, Ohio.
Os achados foram replicados em duas populações distintas, com características diferentes, períodos não sobrepostos e pacientes não coincidentes que receberam prescrição de semaglutida: uma composta por indivíduos com obesidade e outra com diabetes mellitus tipo 2 (DM2). Esses efeitos benéficos estão em consonância com relatos anedóticos, em que pacientes que utilizaram semaglutida relataram uma redução no desejo de consumir álcool durante o tratamento, além de concordarem com relatórios clínicos recentes. Um desses relatórios documenta a redução do consumo de álcool com o uso de semaglutida ou tirzepatida, com base em análises de textos de mídias sociais e acompanhamento de participantes selecionados.
Segundo os autores, outro estudo relatou a diminuição dos sintomas de TUA em uma série de casos de pacientes tratados com semaglutida. Esses resultados também são consistentes com um pequeno ensaio clínico sobre o uso do medicamento exenatida, um agonista do receptor GLP-1, que demonstrou uma redução significativa nos dias de consumo excessivo de álcool e na ingestão total de álcool em pacientes com obesidade. Além disso, um estudo baseado em registros na Dinamarca, que comparou agonistas do receptor GLP-1 (embora sem incluir a semaglutida) com inibidores da dipeptidil peptidase 4 (DPP4), mostrou uma menor incidência de eventos relacionados ao álcool entre 2009 e 2017. Esses achados também são consistentes com estudos pré-clínicos que documentaram a redução do consumo de álcool em roedores expostos à semaglutida, bem como a prevenção de recaídas em um modelo de dependência alcoólica em ratos.
A população do estudo de Wang et al. (2024) consistiu em 83.825 pacientes com obesidade que não tinham diagnóstico prévio de transtorno por uso de álcool e que foram prescritos pela primeira vez com semaglutida ou medicamentos anti-obesidade não baseados em agonistas de GLP-1, como naltrexona ou topiramato, no período entre junho de 2021 e dezembro de 2022. A coorte de pacientes que utilizaram semaglutida (n = 45.797), em comparação com a coorte que utilizou medicamentos anti-obesidade não baseados em GLP-1 (n = 38.028), era mais velha, apresentava maior prevalência de obesidade severa e comorbidades associadas à obesidade, incluindo diabetes tipo 2, além de uma menor prevalência de transtornos mentais e de uso de tabaco. Uma coorte é um grupo de indivíduos que compartilham uma característica ou experiência em comum, acompanhados ao longo de um período de tempo em estudos epidemiológicos ou clínicos. Comparando a coorte de semaglutida (n = 45.797) com a coorte de naltrexona/topiramato (n = 16.676), os pacientes que usaram semaglutida eram mais velhos, apresentavam maior prevalência de obesidade severa e comorbidades associadas à obesidade, como diabetes tipo 2, e menor prevalência de transtornos mentais e de uso de tabaco.
As coortes pareadas foram acompanhadas por 12 meses após o evento inicial. Durante esse período, observou-se que a semaglutida estava associada a um risco significativamente menor de diagnóstico recorrente de TUA em comparação com os medicamentos anti-obesidade que não são agonistas de GLP-1 (0,37% vs. 0,73%). Isso significa que o grupo que usou semaglutida apresentou quase metade do risco de recorrência de TUA (HR: 0,50, intervalo de confiança de 95%: 0,39–0,63). Esses resultados foram consistentes em diferentes grupos de gênero, faixa etária e etnia. Além disso, esse risco reduzido foi observado tanto em pacientes com diabetes tipo 2 (T2DM) quanto naqueles sem diabetes. Quando comparada diretamente com a naltrexona ou o topiramato, a semaglutida também mostrou uma redução significativa no risco de um novo diagnóstico de TUA (0,35% vs. 0,78%). Nesse caso, o grupo que utilizou semaglutida teve uma redução de 56% no risco de desenvolver TUA (HR: 0,44, intervalo de confiança de 95%: 0,32–0,61). Assim como nos resultados anteriores, essa redução de risco foi consistente entre diferentes grupos de gênero, idade, etnia e nos pacientes com ou sem diabetes tipo 2. Esses dados indicam que a semaglutida, além de seu efeito no controle de peso e comorbidades associadas, também pode ter um impacto positivo na redução do risco de transtorno por uso de álcool.
Os mecanismos subjacentes ainda não foram totalmente delineados, mas provavelmente envolvem a modulação do sistema de recompensa dopaminérgico cerebral através dos receptores de GLP-1, que estão presentes tanto na área tegmental ventral (VTA), onde os neurônios dopaminérgicos estão localizados, quanto no núcleo accumbens (NAc), que é a principal projeção dos neurônios dopaminérgicos da VTA. A participação da via de recompensa dopaminérgica na modulação do consumo de alimentos e álcool pode explicar por que a semaglutida é eficaz na redução da ingestão de alimentos e, em modelos animais, na redução do consumo de álcool e outras drogas. De fato, a semaglutida se liga ao NAc, onde demonstrou atenuar o aumento de dopamina induzido pelo álcool em ratos, fornecendo evidências da modulação da semaglutida no sistema de recompensa dopaminérgico mesolímbico.
É importante destacar que os efeitos gratificantes dos alimentos são um fator-chave no comer em excesso e na obesidade, assim como os efeitos gratificantes do álcool impulsionam seu consumo. Como o GLP-1 também medeia respostas ao estresse, esse pode ser outro mecanismo pelo qual a semaglutida poderia atenuar a ingestão excessiva de alimentos e o consumo de álcool relacionados ao estresse. A habenula, que possui uma alta concentração de receptores de GLP-1, também pode participar das ações da semaglutida, pois está envolvida no reforço negativo em casos de obesidade e em transtornos por uso de álcool e outras substâncias.
Adicionalmente, os efeitos anti-inflamatórios da semaglutida e de outros medicamentos agonistas do receptor de GLP-1 também foram implicados em seus possíveis efeitos benéficos no TUA e em outros transtornos por uso de substâncias. Contudo, os efeitos benéficos da semaglutida no consumo de álcool podem também refletir o fato de que o álcool, assim como os alimentos, serve como fonte de energia, e pode envolver uma combinação de mecanismos centrais e periféricos, como os efeitos da semaglutida na absorção, farmacocinética e metabolismo do álcool (embora não haja relatos). É provável que, como diminui o esvaziamento gástrico, também reduza a absorção do álcool. Como a taxa de absorção do álcool influencia seus efeitos gratificantes, uma absorção mais lenta poderia tornar o álcool menos gratificante.
A absorção retardada também poderia aumentar o metabolismo do álcool no estômago, transformando-o em acetaldeído, o que intensificaria seus efeitos aversivos. Até o momento, apenas um ensaio clínico randomizado foi publicado avaliando os efeitos do agonista do receptor de GLP-1, exenatida, em pacientes com transtorno por uso de álcool. Embora esse estudo não tenha relatado reduções nos dias de consumo excessivo de álcool (principal desfecho), mostrou uma atenuação significativa na ativação cerebral em resposta a estímulos relacionados ao álcool. Além disso, em uma análise secundária, os pesquisadores encontraram uma redução significativa nos dias de consumo excessivo de álcool e na ingestão total em pacientes com TUA e obesidade. Isso é relevante já que os benefícios da semaglutida foram observados em pacientes com obesidade e em pacientes com diabetes tipo 2 (DM2), muitos dos quais também tinham obesidade.
Na análise dos pacientes com DM2, estratificados por terem ou não diagnóstico de obesidade, observou-se que o menor risco de incidência de TUA com o uso de semaglutida em pacientes sem obesidade foi semelhante ao observado em pacientes com obesidade. Em resumo, o estudo fornece evidências do mundo real que apoiam os benefícios terapêuticos da semaglutida para o TUA. É importante esclarecer que os achados de menor risco de incidência e recaída de TUA em pacientes que tomam semaglutida não podem ser interpretados como uma redução da sintomatologia do TUA, e são insuficientes para justificar o uso off-label de semaglutida no tratamento do TUA. Para isso, são necessários dados provenientes de ensaios clínicos randomizados. Como indivíduos com TUA apresentam maior risco de transtornos de humor e ideação suicida, e houve preocupações de que a semaglutida pudesse aumentar esses riscos, embora evidências recentes sugiram uma redução, será importante que futuros ensaios clínicos avaliem os efeitos da semaglutida no humor e na ideação suicida. Estudos futuros também devem investigar interações com o álcool e com medicamentos para o TUA.
REFERÊNCIA
Wang W, Volkow ND, Berger NA, Davis PB, Kaelber DC, Xu R. Associations of semaglutide with incidence and recurrence of alcohol use disorder in real-world population. Nat Commun. 2024 May 28;15(1):4548. doi: 10.1038/s41467-024-48780-6. Erratum in: Nat Commun. 2024 Jun 18;15(1):5177. doi: 10.1038/s41467-024-49655-6.
Por Décio Gilberto Natrielli Filho
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Contribua para o Blog Desvendando a Personalidade !!! Deixe sua mensagem !!!