sábado, 9 de novembro de 2024

O Modelo Biopsicossocial da Personalidade no Estilo de Vida

Blog Desvendando a Personalidade
A Neurociência e Neurobiologia do Desenvolvimento Humano

By DALL-E

Nos últimos cinco anos, os estudos sobre a psicobiologia da personalidade humana avançaram significativamente. Agora entendemos melhor sua complexidade, incluindo os múltiplos componentes que a formam e como ela funciona de forma dinâmica. Descobrimos também as mudanças evolutivas que nos deram habilidades como autoconsciência e a capacidade de entender e sentir o que os outros sentem, habilidades essas que nos diferenciam de outros animais.

Tenho estudado os trabalhos de Robert Claude Cloninger e seu grupo de pesquisa desde 2001. Seu modelo de temperamento e caráter é um dos mais validados na literatura mundial, contribuindo substancialmente para o conhecimento dos fatores psicobiológicos envolvidos no desenvolvimento humano e da personalidade. 

Importante ressaltar que todo o texto desta publicação foi extraído das referências bibliográficas que estão detalhadas no final. Realizei um esforço para uma tradução que contemplasse os amplos conceitos de forma didática e compreensiva. Quem se interessar por mais detalhes sobre o modelo de Cloninger e colaboradores, pode acessar outras postagens do Blog Desvendando a Personalidade sobre temperamento e caráter. 

As pesquisas modernas tentam esclarecer os mecanismos fundamentais que são essenciais para fomentar um desenvolvimento saudável da personalidade, além de destacarem seu impacto significativo no bem-estar biopsicossocial. Ter uma personalidade saudável é crucial para o bem-estar em todas as suas formas. Isso ocorre porque a personalidade saudável atua como uma base que regula como nós aprendemos a unir nossos hábitos, metas e valores de maneira coerente e positiva. Ao fazê-lo, não apenas promovemos o nosso próprio bem-estar, mas também contribuímos positivamente para as pessoas ao nosso redor e para o ambiente em que vivemos. Essa integração assegura que nossas ações e escolhas sejam sensatas e proveitosas, melhorando nossa qualidade de vida e a dos outros.

De forma particular, os seres humanos modernos são capazes de combinar autocontrole com autoconsciência. Isso nos permite ajustar nossos comportamentos, emoções, metas e valores de uma maneira organizada, melhorando nossa saúde e bem-estar através do que chamamos de autorrealização. Além disso, nossa habilidade de perceber e sentir conexões com outras pessoas e com a natureza nos ajuda a reconhecer as diferenças entre nós mesmos e os outros, ao mesmo tempo que nos identificamos com eles e com o ambiente ao nosso redor.

Essas características são fundamentais para o nosso desenvolvimento pessoal, pois permitem que cultivemos uma maior consciência de nós mesmos e dos outros, combinando flexibilidade, criatividade e valores que beneficiam a sociedade como um todo. Interessante notar que a capacidade genética para alcançar essa autorrealização e autotranscendência não é encontrada em outros hominídeos, como chimpanzés ou neandertais, mesmo que compartilhemos a maioria dos genes que codificam proteínas com essas espécies.

A base genética responsável pela expressão de proteínas envolvidas na consciência humana moderna é formada por genes especializados. Esses genes têm a função crucial de regular a atividade de outros genes que codificam essas proteínas. Essa regulação é essencial para o funcionamento de três sistemas fundamentais do cérebro que estão intimamente ligados à aprendizagem e à memória:

1. Condicionamento: Este sistema engloba os processos neurais que permitem que comportamentos sejam automatizados através da repetição, tornando-se hábitos. Podem incluir desde atividades simples, como amarrar sapatos, até complexas, como dirigir um carro. 

2. Intencionalidade: Relacionado à capacidade de definir e perseguir objetivos conscientes. Este sistema permite que façamos escolhas deliberadas e planejemos nossas ações futuras, que podem variar desde a decisão de iniciar uma dieta até a de mudar de carreira. 

3. Autoconsciência: Este é o sistema mais complexo e distintivamente humano, envolvendo nossa capacidade de refletir sobre nós mesmos, nossos pensamentos e sentimentos. A autoconsciência permite um entendimento profundo do próprio eu e de como somos percebidos pelos outros. Portanto, refere-se a  funções cerebrais como a metacognição — a capacidade de pensar sobre o próprio pensamento — e a empatia, que é fundamental para interagir e compreender os outros.

Esses três sistemas estão interligados, mas cada um depende de uma rede específica de expressão genética. Essa regulação assegura que o cérebro humano funcione de maneira ótima, permitindo-nos responder de forma adaptativa a uma vasta gama de situações cotidianas e desafios complexos. A hereditariedade da personalidade humana é predominantemente explicada por um conjunto de 972 genes, organizados em três redes especializadas que operam de maneira quase independente entre si. Estudos comparativos entre os genomas de humanos modernos, Neandertais e chimpanzés mostram que 267 desses genes, exclusivos ao Homo sapiens, são essenciais para os traços de personalidade.

Destaca-se que a maior parte desses genes exclusivos se encontra ativa na rede dedicada à autoconsciência e está sob seleção positiva, indicando uma evolução favorável a essas características. Esses genes regulatórios de RNA, que correspondem a 95% dos 267 genes, são predominantemente longos e não codificam proteínas. Em vez disso, eles regulam a expressão de outros genes codificadores de proteínas e organizam a expressão desses genes em agrupamentos funcionais. Essa regulação se manifesta fortemente em regiões cerebrais que compõem a rede de autoconsciência, já identificada em estudos de imagem cerebral funcional.

Os sistemas genéticos que moldam a personalidade humana desenvolveram-se em etapas sequenciais ao longo da evolução. O sistema mais primitivo, emergido há aproximadamente 40 milhões de anos entre macacos e símios, está ligado à reatividade emocional. Este sistema primitivo administra impulsos e hábitos de aprendizagem, além de facilitar o apego social e a resolução de conflitos. Posteriormente, menos de 2 milhões de anos atrás, uma segunda rede evoluiu num ancestral comum a Neandertais e humanos modernos, habilitando a regulação de comportamentos de autocontrole intencional, que incluem autodirecionamento e cooperação para benefícios mútuos. Finalmente, cerca de 100.000 anos atrás, uma terceira rede, associada à autoconsciência criativa, surgiu entre os humanos modernos, dotando-os da capacidade para desenvolver arte narrativa, ciência e espiritualidade.

Conforme mencionado anteriormente, além da inteligência, os seres humanos modernos contam com três sistemas específicos de aprendizado: condicionamento comportamental, intencionalidade e autoconsciência. Esses sistemas podem funcionar de forma independente, mas geralmente atuam juntos para ajudar as pessoas a se ajustarem a mudanças nas condições internas e externas de maneira realista e que favoreça a saúde. A combinação desses três sistemas é fundamental para o desenvolvimento da personalidade e para a manutenção da saúde e do bem-estar.

By DALL-E

Portanto, a personalidade humana é moldada por sistemas de aprendizado, o que significa que ela não é algo fixo ou totalmente definido no nascimento. Estamos continuamente aprendendo e construindo nossa saúde momento a momento. Esta capacidade de adaptação e inovação nos permite ajustar-nos a mudanças nas condições internas e externas. Com o desenvolvimento da autoconsciência, os seres humanos modernos ganharam habilidades cognitivas avançadas, como recordar claramente o passado, avaliar o presente e imaginar futuros alternativos. A autoconsciência também nos dá a capacidade de criar normas sociais e valores culturais que sustentam grandes comunidades, onde as pessoas normalmente conseguem cooperar de forma respeitosa e, idealmente, se identificar mutuamente e com o mundo, promovendo uma sensação de interdependência e compreensão mútua.

Por exemplo, quando um cuidador e uma criança interagem reciprocamente, ambos sentem que suas ações impactam um ao outro. Essas relações de mão dupla ajudam as crianças a desenvolverem confiança e autoestima, pois elas se sentem amadas, valorizadas e dignas de amor. Infelizmente, existem condições adversas, como abuso e negligência infantil, além de medo, violência e injustiça social na sociedade, que podem prejudicar o desenvolvimento da autoconsciência. Essas situações dificultam o avanço em direção à autorrealização, à intersubjetividade e à autotranscendência, podendo tornar as visões de mundo individuais e culturais desadaptadas e insustentáveis.

A adolescência traz consigo mudanças na personalidade que propiciam uma reavaliação das tradições culturais. Esse período possibilita um processo criativo de formação e reavaliação da identidade, além de permitir uma revisão dos objetivos e valores da sociedade, que podem já não ser mais sustentáveis ou benéficos, abrindo caminho para novas adaptações e melhorias.

Pessoas e suas culturas frequentemente enfrentam diversos prejuízos relacionados ao bem-estar físico, mental e social. No entanto, esses problemas podem ser significativamente mitigados quando há um entendimento claro de como integrar os três sistemas de aprendizado e memória que regem a nossa existência. Compreender e aplicar esses sistemas de maneira eficaz pode levar a uma vida mais equilibrada e saudável. O caminho para o bem-estar é essencialmente uma jornada de aumento da consciência pessoal e coletiva. Isso envolve o fortalecimento de características de caráter específicas que nos ajudam a viver de forma mais harmoniosa e produtiva. 

Primeiro, o autodirecionamento, que envolve forças de caráter intrapessoais como ser engenhoso e responsável. Desenvolver essas características permite que uma pessoa conduza sua vida de maneira proativa, utilizando seus recursos internos para alcançar seus objetivos e enfrentar desafios com confiança e eficácia.

Em segundo lugar, a cooperatividade, que abrange forças de caráter interpessoais como ser tolerante e útil. Essas qualidades são fundamentais para a construção e manutenção de relacionamentos saudáveis e para a promoção de um ambiente comunitário onde o apoio mútuo e o respeito são predominantes. Ao cultivar a cooperatividade, indivíduos podem trabalhar juntos de forma mais eficiente e viver em harmonia, apesar das diferenças individuais.

Por último, a autotranscendência, que inclui forças de caráter transpessoais como ser altruísta e contemplativo. Este aspecto do caráter nos permite olhar além de nossas necessidades e desejos individuais e conectar-nos com uma ordem maior — seja ela espiritual, comunitária ou ecológica. A autotranscendência nos inspira a contribuir para o bem maior e a encontrar significado e propósito em ações que transcendem nossos interesses pessoais.

By DALL-E

Ao desenvolver essas três dimensões do caráter, as pessoas não só melhoram sua própria saúde e bem-estar, mas também contribuem para o bem-estar da comunidade e da sociedade como um todo. Ao fortalecer essas qualidades, criamos um ciclo dinâmico de crescimento e desenvolvimento pessoal que também reverbera positivamente nas relações sociais e comunitárias. A autotranscendência é um processo profundo e transformador pelo qual um indivíduo percebe e se envolve ativamente com realidades que transcendem o seu próprio mundo interno. Este processo inicia-se quando a pessoa começa a sentir uma conexão palpável com algo ou alguém que ultrapassa as fronteiras do self. Tal experiência pode mudar gradualmente a forma como a pessoa vê o mundo, movendo-se de um sentimento de isolamento para um estado de intersubjetividade, onde há um reconhecimento da conexão compartilhada entre todos os seres. 

Um exemplo claro deste fenômeno ocorre quando alguém percebe sua ligação com toda a humanidade, com a natureza ou mesmo com concepções divinas. Essa compreensão consciente de fazer parte de algo maior pode despertar emoções intensamente positivas, como alegria e admiração. Essas emoções são frequentemente acompanhadas por uma profunda humildade e reverência, sentimentos que enriquecem ainda mais a experiência de autotranscendência.

Estudos longitudinais sugerem que desenvolver a autotranscendência e o bem-estar geral envolve uma interação dinâmica entre três processos chave. Primeiramente, a plasticidade, que é a capacidade e a disposição para mudar. Ter uma abertura para transformações pessoais é essencial para adaptar-se e crescer além dos próprios limites previamente percebidos. Em segundo lugar, a virtude, que envolve possuir uma compreensão intuitiva do que é benéfico não apenas para si mesmo, mas também para os outros. Esta percepção ajuda a guiar decisões e ações de maneira ética e moralmente sólida. Por último, o funcionamento criativo, que inclui ser inovador e intencional em suas ações, garantindo que os hábitos diários estejam alinhados com objetivos mais amplos e valores pessoais profundos. Esta congruência entre hábitos e valores facilita a realização pessoal e contribui para uma vida mais harmoniosa e significativa.

Embora muitas vezes seja uma força positiva para o crescimento pessoal e coletivo, a autotranscendência pode manifestar-se de maneiras saudáveis e patológicas. Uma expressão saudável seria caracterizada pelo equilíbrio e integração entre o senso de eu e a conexão com algo maior, resultando em aumento de bem-estar e sentido de propósito. Por outro lado, a autotranscendência patológica pode ocorrer quando essa busca por conexão ultrapassa os limites da realidade pessoal e da cultura na qual o indivíduo está inserido, levando a comportamentos e escolhas disfuncionais baseados em ideais não realistas ou fusão excessiva com entidades ou ideologias que comprometem a autonomia individual. Este tipo de autotranscendência pode resultar em comprometimento da capacidade de diferenciar a realidade concreta de fantasias, pensamento mágico com prejuízo do discernimento, isolamento social, distanciamento e alterações no conteúdo do pensamento e juízo de realidade.

Retomando o raciocínio, o desenvolvimento de uma personalidade saudável está intrinsecamente ligado ao cultivo da autotranscendência, um processo que envolve os três aspectos cruciais de plasticidade, virtude e criatividade. Esses componentes são essenciais para fomentar uma vida saudável, feliz e virtuosa. Tradicionalmente, a autotranscendência não era central nas teorias de desenvolvimento de personalidade. Inicialmente, os behavioristas focaram no condicionamento de hábitos, os terapeutas cognitivos concentravam-se na análise de pensamentos e emoções disfuncionais, e os psicanalistas investigavam as pulsões inconscientes que influenciam o comportamento humano.

Por muito tempo, a importância de adotar uma perspectiva mais autotranscendente foi subestimada no campo da psicologia e da psiquiatria. Contudo, com o surgimento das psicoterapias de "terceira onda" e das abordagens positivas nestas áreas, começou-se a reconhecer a relevância de integrar práticas que promovem a autotranscendência. Essas novas abordagens incluem técnicas que estimulam o indivíduo a olhar além de si mesmo, como práticas meditativas, interações com a natureza e a realização de atividades altruístas. Tais práticas não apenas enriquecem a experiência terapêutica mas também contribuem significativamente para reduzir a taxa de desistência em terapias tradicionais, como as cognitivo-comportamentais e as psicodinâmicas.

A integração dessas ferramentas tem mostrado resultados promissores, melhorando o bem-estar geral dos pacientes e promovendo a saúde mental. Ao cultivar a autotranscendência, os indivíduos são encorajados a conectar-se com aspectos maiores da existência, o que, por sua vez, facilita uma transformação pessoal mais profunda e sustentável. Esta abordagem biopsicossocial à saúde mental não apenas trata sintomas, mas também ajuda a construir uma estrutura de personalidade mais resiliente e adaptável, capaz de enfrentar os desafios da vida com maior equilíbrio e satisfação.

É de se esperar que pessoas criadas em culturas materialistas sejam resistentes às evidências de que a autotranscendência é essencial para uma vida saudável. No entanto, a maioria das pessoas sente-se vazia e insatisfeita até que experimentem diretamente a interdependência de todas as coisas, resultado da necessidade humana intrínseca de autotranscendência. A interconexão e inseparabilidade dos seres vivos não são meramente uma questão de opinião ou crença. Um corpo cada vez maior de evidências provenientes de pesquisas em biologia e sistemas ecológicos tem mostrado que simbiose e cooperação estão mais envolvidas no funcionamento saudável dos ecossistemas do que a competição. Pesquisas sobre o microbioma em humanos e nos solos encontraram que as profundas interconexões dentro da biosfera são necessárias para o funcionamento adequado do corpo e das comunidades de organismos. Essas interações com o microbioma funcionam ao nível dos genes e da epigenética, e o microbioma parece ser capaz de interagir com o sistema nervoso humano e o sistema endócrino (na verdade, com todos os sistemas do organismo). As células dos organismos vivos são apenas parcialmente separadas umas das outras e do mundo pelas fronteiras semipermeáveis das células que estão ativamente envolvidas na troca de materiais para dentro e fora de si mesmas. 

As experiências humanas de transcendência também falam sobre a interconectividade dos seres vivos. É natural que as pessoas sintam sua conexão com outras pessoas e com o mundo. Indivíduos que tiveram experiências transcendentais, incluindo muitos físicos, biólogos e cientistas cognitivos, frequentemente consideram a crença de que estamos separados de outros aspectos do mundo como ilusória. Eles argumentariam que essa ilusão é causada pelo desenvolvimento inadequado de uma perspectiva alocêntrica ou transpessoal, como é visto em várias formas de psicopatologia. 

No caso da perspectiva alocêntrica, a falha em desenvolver a habilidade de entender e sentir empatia pelas experiências e emoções dos outros pode levar a comportamentos egocêntricos, dificuldades em manter relacionamentos interpessoais saudáveis e um entendimento limitado de contextos sociais mais amplos. Quanto à perspectiva transpessoal, um desenvolvimento inadequado pode resultar em uma conexão fraca ou distorcida com aspectos mais amplos da existência, como espiritualidade ou a sensação de unidade com o universo, o que pode contribuir para uma sensação de isolamento, falta de propósito e crises existenciais. Ambas as deficiências podem impedir uma pessoa de alcançar um sentido de bem-estar integral e de contribuir efetivamente para o bem comum. 

By DALL-E

Mais de três quartos das pessoas experimentam momentos de autotranscendência pelo menos ocasionalmente. A capacidade de adotar perspectivas alocêntricas e transpessoais se desenvolve em crianças humanas por volta dos 7 anos de idade, com o subsequente desenvolvimento de valores éticos e virtudes como bondade e justiça, que são baseados na conscientização das conexões além do nosso self. Em sociedades materialistas, no entanto, o nível de traços autotranscendentes diminui durante a fase inicial da vida adulta, quando as pessoas são incentivadas a se concentrar no trabalho e no casamento, e depois aumenta novamente à medida que as pessoas devem enfrentar situações problemáticas que não podem controlar. Estudos prospectivos indicam que a proporção de pessoas altamente autotranscendentes está aumentando de aproximadamente um terço em coortes de nascimento mais antigas para quase metade das coortes de nascimento mais jovens da população geral, com taxas mais altas em países igualitários e taxas mais baixas onde materialistas autocentrados dominam as instituições sociais e limitam a liberdade de expressão, como as ditaduras.

Apesar de comuns na população geral, a investigação científica desses fenômenos humanos sempre foi controversa fora de domínios como Antropologia e Estudos Religiosos. Cientistas e filósofos que se identificam como agnósticos ou ateus frequentemente consideram a autotranscendência como uma perspectiva ultrapassada ou um resquício de nossa história evolutiva relacionado às funções de criação de significado do cérebro humano, buscando significado onde não existe (Cloninger cita, como exemplos, Richard Dawkins e Daniel Dennett). No entanto, todos os indivíduos experimentam algum tipo de experiência intersubjetiva e transcendente, mesmo que essa experiência não esteja relacionada ao divino. Muitas experiências cotidianas, como ética, arte, cultura, beleza, experiências na natureza e a busca por verdade e justiça social, são experiências de natureza intersubjetiva e autotranscendente. Portanto, é contraproducente ignorá-las ao considerar melhorias no desenvolvimento infantil, educação, promoção da saúde ou terapêutica em qualquer idade. Pesquisas demonstraram que experiências na natureza levam a fortes sentimentos de alegria e conexão e melhoram a saúde física e mental. De maneira similar às experiências na natureza, práticas de mindfulness estão sendo usadas em todo o mundo para ajudar as pessoas a experimentarem um pouco de paz no cotidiano.

Segundo Cloninger, esses estudos e experiências sugerem que não apenas somos mais saudáveis, mas também mais realistas quando estamos cientes de nossas relações estendidas e agimos de maneiras que refletem a realidade mais profunda de nossa interconectividade com todas as coisas. É ilusório considerar outras pessoas e a natureza como meros objetos dos quais estamos separados. Na realidade, somos aspectos interconectados de um todo maior, e nos prejudicamos quando abusamos ou negligenciamos os outros. 

A base genética da personalidade está mais associada a combinações de vários traços do que a traços isolados. Ela não emerge de forma isolada, mas como resultado de uma variedade de processos que variam de pessoa para pessoa, em diferentes interações com o ambiente. Ou seja, a genética da personalidade se expressa melhor através de configurações que envolvem múltiplos traços, não por meio de dimensões isoladas. Embora dimensões como autodirecionamento, cooperatividade e autotranscendência sejam úteis para descrever como as pessoas reagem em diferentes situações, elas são na verdade a manifestação de uma série de redes adaptativas complexas, determinadas por diferentes genes e circuitos cerebrais em cada indivíduo. Além disso, existem diversos caminhos moleculares e neuronais que podem levar a comportamentos que, embora superficialmente similares ou parcialmente sobrepostos, são fundamentalmente distintos em sua origem biológica.

Algumas pessoas têm uma predisposição genética para uma autopercepção criativa, o que frequentemente as leva a ter altos escores de autotranscendência, acompanhada de elevados níveis de cooperatividade e autodirecionamento. Essas pessoas costumam ser idealistas, altruístas e contemplativas, e vivenciam frequentemente momentos de autotranscendência. Por outro lado, há pessoas com uma predisposição genética voltada para o controle intencional próprio, que normalmente apresentam baixa autotranscendência, mas elevados escores de autodirecionamento e cooperatividade. Esses indivíduos tendem a ser materialistas e individualistas, propensos a agir pelo benefício mútuo, porém relutantes em fazer sacrifícios pelos outros. Existem também grupos com diferentes configurações genéticas que apresentam baixo autodirecionamento e/ou cooperatividade, e alguns até relatam elevados escores de autotranscendência. Esses últimos frequentemente possuem transtornos da personalidade com características esquizotípicas, são altamente reativos emocionalmente e cognitivamente desorganizados. Isso indica que pessoas autotranscendentes podem tanto ser altamente autoconscientes, possuindo todos os três traços de caráter desenvolvidos, quanto podem exibir pensamento mágico e alterações perceptivas, o que não corresponde a uma verdadeira autotranscendência, como visto na esquizotipia.

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Muitos profissionais da saúde negligenciavam a diferenciação entre indivíduos altamente autoconscientes e aqueles com pensamento mágico. Hoje podemos afirmar que um perfil criativo, caracterizado por pontuações altas nos três traços de caráter, é um forte e consistente indicador de bem-estar físico, mental e social. A autoconsciência promove o desenvolvimento equilibrado desses traços, portanto, não se pode considerar uma pessoa verdadeiramente autotranscendente a menos que ela também seja autodirigida e cooperativa. Da mesma forma, alguém não pode ser totalmente esperançoso e autorrealizado, ou amoroso e compassivo, a menos que seja verdadeiramente autotranscendente.

Várias técnicas terapêuticas, incluindo mudanças na dieta, exercícios físicos, técnicas para regular o humor, meditação e a prática de atos de bondade, têm impactos positivos na saúde e no desenvolvimento da personalidade. Esses impactos são, muitas vezes, tão eficazes quanto os tratamentos médicos convencionais. Segundo os princípios da terapia centrada na pessoa, alcançar o bem-estar geralmente resulta da ativação de diversos mecanismos que funcionam de forma sinérgica. Isso significa que eles trabalham juntos para melhorar como funcionamos, nossa capacidade de adaptação e nossa integridade moral diante dos desafios cotidianos.

A obtenção de bem-estar e a recuperação de doenças são apoiadas por uma série de qualidades fundamentais, tais como a esperança, a empatia e o respeito por si mesmo e pelos outros. Essas qualidades derivam de uma visão de vida autotranscendente, comum a pessoas criativas e saudáveis em todas as culturas do mundo. Contrariamente, uma percepção de isolamento pode levar a sentimentos de medo, alienação e um foco nocivo em orgulho ou vergonha pessoais. O cuidado centrado na pessoa, uma abordagem terapêutica que valoriza a experiência individual, promove a saúde ao criar uma experiência de unidade dentro da relação terapêutica. Esta percepção de unidade não apenas ajuda durante o tratamento, mas também pode ser levada para outros aspectos da vida do paciente.

Cloninger cita uma informação comum em livros de psicologia: que, na psicoterapia, apenas cerca de 15% dos resultados dos tratamentos são devidos às técnicas específicas usadas por diferentes escolas terapêuticas. Surpreendentemente, cerca de 85% dos resultados são explicados por fatores comuns, que são elementos influenciados fortemente por fatores psicossociais gerais, que muitas vezes têm um impacto tão significativo quanto ou maior do que as próprias técnicas específicas de tratamento. Esses fatores incluem aspectos como as características pessoais do paciente e várias qualidades do terapeuta, como o respeito pelo paciente, que envolve valorização e aceitação incondicional; a capacidade de compreensão empática; e a autenticidade na interação. Além disso, a qualidade da aliança terapêutica — que se baseia em metas compartilhadas, engajamento emocional e uma troca efetiva entre terapeuta e paciente — é crucial.

Essencialmente, esses elementos comuns ajudam a promover o bem-estar ao incentivar a autotranscendência dentro de uma relação ou aliança terapêutica que é intersubjetiva, ou seja, envolve uma troca mútua e significativa entre as partes. Essas características não são apenas fundamentais dentro de contextos terapêuticos, mas são também vitais para todas as relações humanas saudáveis. Elas desempenham um papel crucial na manutenção e recuperação da saúde em todos os seus aspectos — físico, mental, social e espiritual — e são indispensáveis para um desenvolvimento pessoal positivo e duradouro.

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A PERSONALIDADE NA VISÃO BIOPSICOSSOCIAL PROPOSTA POR CLONINGER E COLABORADORES

O conhecimento sobre a personalidade das pessoas fornece um contexto biopsicossocial no qual seus comportamentos e relacionamentos podem ser adequadamente entendidos como um processo adaptativo complexo, essencial para todo diagnóstico e tratamento. Portanto, nenhuma avaliação na área da saúde é completa sem uma descrição da personalidade do paciente e de seu desenvolvimento ao longo da vida. De fato, pode-se argumentar que abordagens centradas na pessoa são preferidas em todas as áreas da medicina e da saúde em geral, pois a falta de uma avaliação completa da personalidade e suas implicações pode levar ao desenvolvimento de muitas doenças crônicas, que são a origem da maior parte do ônus das doenças em sociedades afluentes. Mais de 70% do ônus geral das doenças poderiam ser prevenidos por um cuidado de saúde universal guiado por princípios centrados na pessoa, tanto no cuidado individual quanto na saúde pública, e, em particular, por uma avaliação e tratamento eficazes da personalidade.

Cloninger descreveu três práticas fundamentais que contribuem significativamente para o desenvolvimento do bem-estar pessoal: (1) aprender a desapegar, (2) dedicar-se ao serviço dos outros e (3) aumentar a consciência sobre si mesmo e o mundo ao redor. O desapego implica aceitar-se como realmente é, o que facilita um desenvolvimento pessoal mais realista e tranquilo, sem resistências internas ou preocupações excessivas. Esta atitude de aceitação e desapego representa uma forma de esperança, em contraste com a submissão a desejos incontroláveis ou intermináveis. Trabalhar a serviço dos outros manifesta-se através de atos de bondade sinceros, que podem ser profundamente satisfatórios, mesmo quando exigem sacrifícios pessoais. Tal serviço seria, na verdade, uma demonstração de amor e uma recusa a ceder ao medo ou ao egoísmo. Por fim, crescer em consciência significa utilizar a nossa capacidade intelectual e emocional para estar atento a todas as dimensões de nossa existência. Através de atividades como reflexão, meditação e contemplação, podemos aprender mais sobre nós mesmos e explorar os laços profundos que nos conectam aos outros e ao mundo em geral. Essa expansão da consciência revela os verdadeiros benefícios de uma compreensão intuitiva e a convicção pessoal, em vez de simplesmente aceitar cegamente as ideias impostas por autoridades externas. 

Para realizar uma avaliação completa da personalidade, é fundamental considerar tanto o nível de autoconsciência quanto o bem-estar do indivíduo, não se limitando apenas a identificar suas deficiências. A verdadeira saúde e bem-estar transcendem a simples ausência de traços desviantes, dependendo da capacidade da pessoa de expressar virtudes humanas e emoções positivas que superam a média observada na sociedade contemporânea.

A jornada para alcançar o bem-estar envolve quatro estágios principais de autoconsciência:

Estágio 0 - Indiferença: No estágio inicial, a pessoa está, de certa forma, "inconsciente" de si mesma. Ela age de maneira imatura, buscando gratificação imediata sem considerar as consequências ou a relevância de suas ações para o bem-estar a longo prazo. Este estágio é frequentemente descrito como um estado de ego "infantil", onde predominam as necessidades e desejos imediatos. Pessoas com transtornos da personalidade graves ou psicoses muitas vezes apresentam uma ausência de autoconsciência, caracterizada por uma falta de percepção clara sobre suas crenças e perspectivas pré-verbais, o que as leva a reagir baseadas apenas em impulsos emocionais imediatos.

Estágio 1 - Cognição Adulta Comum: Neste estágio, o indivíduo já possui uma cognição mais desenvolvida e orientada a objetivos, mas ainda mantém um foco egocêntrico. A pessoa neste nível é capaz de adiar a gratificação para alcançar metas, no entanto, experimenta frequentemente emoções negativas como ansiedade, raiva e desgosto. Este é considerado o estado de "ego adulto", onde o indivíduo funciona efetivamente sob condições normais, mas pode enfrentar desafios emocionais sob estresse. Embora permita adiar gratificações, ainda é frequentemente egocêntrica e defensiva. Neste estágio, é comum que os adultos enfrentem angústia quando não conseguem satisfazer seus desejos ou manter vínculos. É possível, neste ponto, optar por técnicas que ajudam a relaxar e soltar emoções negativas, criando condições para aceitar a realidade e evoluir para uma compreensão mais profunda e coesa.

Estágio 2 - Metacognição: Aqui, o indivíduo alcança uma maturidade maior, tornando-se alocêntrico e consciente. Isso envolve uma capacidade de estar ciente dos processos mentais que operam abaixo da superfície consciente. Neste estágio, a pessoa é calma e paciente, capaz de supervisionar conflitos e relações de maneira mais eficaz. Esse nível é descrito como o estado de ego "parental" e está associado à "atenção plena" ou mindfulness. Uma variedade de técnicas de relaxamento pode auxiliar os indivíduos a alcançar e manter o estágio funcional de autoconsciência. Métodos como a respiração abdominal lenta e profunda, que ativa o nervo vago, meditações focadas que aumentam a atenção, caminhadas ao ar livre ou ouvir música harmoniosa são práticas benéficas que promovem a calma e ajudam na transição para estágios mais avançados de autoconsciência. Essas técnicas são essenciais para quem busca superar emoções negativas e avançar em seu desenvolvimento pessoal.

Estágio 3 - Contemplação: Envolve a percepção direta da perspectiva inicial de alguém — isto é, a visão pré-verbal ou os esquemas que direcionam a atenção de uma pessoa e fornecem a estrutura que organiza suas expectativas, atitudes e interpretação dos eventos. A consciência direta de sua própria perspectiva permite a expansão da consciência ao acessar material anteriormente inacessível, permitindo assim o abandono do pensamento ilusório e o questionamento imparcial das suposições básicas e crenças centrais sobre a vida, como "sou impotente", "sou incapaz de ser amado" ou "a fé é uma ilusão". Em outras palavras, na contemplação uma pessoa se torna consciente de sentimentos profundos pré-verbais que emergem espontaneamente de uma perspectiva única, como esperança, compaixão e reverência. O estado de contemplação é muito mais poderoso na transformação da personalidade do que a atenção plena, que muitas vezes falha em reduzir sentimentos de desesperança.

Cada estágio de autoconsciência na jornada para o bem-estar revela a importância do autoconhecimento e do desenvolvimento pessoal. A transição de um estágio para outro envolve não apenas mudanças comportamentais, mas também uma transformação profunda na maneira de perceber a si mesmo e ao mundo ao redor. Pesquisas detalhadas mostraram que é possível descrever e medir a evolução pessoal através de diferentes estágios de desenvolvimento, tanto em termos de caráter quanto em aspectos psicossociais. Essa evolução pode ser visualizada como uma espiral que se expande em altura, largura e profundidade conforme a pessoa amadurece e a coerência de sua personalidade se fortalece. Interessantemente, o padrão de mudança no pensamento de uma pessoa, seja de semana para semana ou de mês para mês, também segue essa forma espiralada, o que ocorre independentemente do período de tempo considerado. Essa repetição de padrões é uma característica dos sistemas adaptativos complexos, que são comuns tanto em processos psicossociais quanto neurobiológicos.

A relevância clínica desse modelo é significativa: ela permite que terapeutas ensinem as pessoas a desenvolverem sua autoconsciência, guiando-as através dos estágios de consciência que foram identificados. O processo de aprender a navegar por esses estágios e as dificuldades encontradas ao longo do caminho podem revelar como alguém é capaz de enfrentar desafios na vida. Essa capacidade de autoconsciência é crucial para o crescimento pessoal e para a maneira como lidamos com as adversidades cotidianas.

O desenvolvimento da autoconsciência e do bem-estar em cada indivíduo demanda condições psicobiológicas específicas. Para avançar de um estado de bem-estar reduzido para um superior, é necessário um aprofundamento da autoconsciência. Isso implica que o indivíduo reconheça e aceite as limitações das próprias suposições sobre o que considerava satisfatório e valioso, adaptando-se então de maneiras que sejam mais coerentes e flexíveis. Durante esse processo, é comum que ocorra um desapego do que é familiar, acompanhado por um aumento temporário em emoções negativas, que precede o surgimento de emoções positivas e outras melhorias no bem-estar.

Nesse contexto, o papel de um clínico eficaz é crucial. Ele deve oferecer as condições adequadas para facilitar essa transição, o que pode ser visto como proporcionar "a energia de ativação" necessária. Isso é feito através de compaixão, esperança, paciência e consciência do clínico, entendendo que, no final das contas, é o paciente quem deve realizar o esforço para crescer em autoentendimento. Esse crescimento se move de uma perspectiva de isolamento, frequentemente marcada por emoções negativas e comportamentos autodestrutivos, para uma visão de unidade, caracterizada por emoções positivas regulares e comportamentos de autorrealização. Cada etapa neste caminho exige abordagens terapêuticas distintas, pois diferentes facetas do ser humano são engajadas em cada fase do desenvolvimento do caráter. 

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TRANSTORNOS DA PERSONALIDADE

Pessoas com transtornos da personalidade (TP) raramente buscam ajuda por conta própria, a menos que sejam encorajadas por alguém próximo, como um cônjuge, colega ou familiar. Esse encorajamento geralmente ocorre quando comportamentos problemáticos começam a afetar seriamente o casamento, a família ou a carreira. Esses indivíduos também podem procurar ajuda quando sintomas associados, como ansiedade, depressão ou abuso de substâncias, se tornam incômodos. O modelo centrado na pessoa (PCM) é uma abordagem que pode ajudar esses indivíduos a focar em melhorar seu bem-estar físico e mental.

Durante grande parte do século 20, muitas pessoas duvidavam que indivíduos com TP pudessem realmente se recuperar. Assumia-se que predisposições genéticas e lembranças de negligência ou traumas passados raramente eram transformadas, limitando a melhora apenas a defesas e estratégias de enfrentamento melhores. Hoje, pesquisas e tratamentos mostram que um crescimento profundo e duradouro em autocompreensão e bem-estar é possível quando a pessoa consegue lembrar do passado e imaginar opções para o futuro com clareza e consciência.

O passado pode ser reprocessado a partir de uma perspectiva mais profunda, dando à realidade um novo significado, mais esperançoso. As pessoas podem — e precisam — criar sua própria saúde a cada momento, assim como nossas memórias não são fixas. Elas são constantemente reconstruídas e reinterpretadas como uma forma viva de compreender a realidade. O que lembramos ou imaginamos pode ser sentido e revivido de diferentes pontos de vista, sem distorcer a realidade, como quando ouvimos uma história ou a piada de uma narrativa. Tanto o humor (“ha-ha”) quanto o insight (“ah-ha”) envolvem mudanças de perspectiva que reintegram sentimentos e pensamentos com um novo significado.

Existem três erros principais que podem impedir o tratamento eficaz dos TPs, todos evitáveis pelo profissional de saúde. O primeiro é a perda de objetividade, muitas vezes marcada pelo surgimento de fortes emoções (contratransferência), que podem comprometer a qualidade do tratamento. Nesses casos, é importante buscar supervisão e, se necessário, encaminhar o paciente para outro especialista. O segundo erro é acreditar que TPs são intratáveis, um mito que pode ser desmentido com o sucesso de tratamentos em ambientes adequados, como uma aliança terapêutica cooperativa. O terceiro erro é dar conselhos diretos, o que pode ser contraproducente, pois esses pacientes podem se tornar dependentes ou ressentidos. Em casos selecionados, alguns conselhos podem ser úteis, mas geralmente é melhor encorajar a autoconsciência e a reflexão.

Tratar TPs envolve mais do que apenas aplicar lógica e senso comum, requer um entendimento profundo da necessidade do paciente de desenvolver novas perspectivas sobre si mesmo e suas relações. Apoiar mecanismos de enfrentamento saudáveis e adaptativos, ao invés de apenas fornecer psicoterapia de apoio, é crucial para promover o crescimento pessoal e resolver problemas de maneira eficaz.

Promover uma mudança adaptativa sobre os traços disfuncionais da personalidade, que é invariavelmente necessária para pessoas com TP, envolve uma reorganização extensiva de conceitos internalizados e mecanismos de enfrentamento e, portanto, requer uma análise diagnóstica precisa, estratégias de tratamento específicas e treinamento especializado. O tratamento especializado pode incluir qualquer uma das várias abordagens de psicoterapia disponíveis e geralmente é combinado com farmacoterapia e terapia mente-corpo, de modo que o tratamento é, idealmente, um exemplo proeminente da utilidade da medicina centrada na pessoa (integrativa no sentido original do conceito) na prática.

Indivíduos com TP têm uma capacidade peculiar de despertar emoções fortes em outras pessoas. Muitas vezes, são descritos (pejorativamente) como "irritantes", "desagradáveis", "difíceis" ou "ruins". Alternativamente, podem ser sedutores ou dependentes, suscitando reações ou emoções inadequadas, como interesse sexual ou o impulso de "salvá-los". Mesmo profissionais podem ter dificuldade em tratá-los com objetividade e respeito devido à imprecisão das fronteiras pessoais. Essa perda de objetividade ocorre porque as crenças profundas do paciente sobre outras pessoas frequentemente provocam respostas interpessoais que correspondem a essas crenças. Nossas suposições sobre nós mesmos e os outros tendem a se tornar "profecias autorrealizáveis" devido a mecanismos automáticos de transferência de afeto. Por exemplo, se alguém sorri para você, comunicando apreço, é natural sentir apego social e retribuir o sorriso automaticamente. Da mesma forma, se alguém franze a testa em sinal de raiva, é natural sentir-se na defensiva, preparado para uma possível agressão. Por exemplo, muitos pacientes com TP são desconfiados e hostis em relação às intenções dos outros. Essa atitude desconfiada é comunicada por várias formas verbais e não-verbais, frequentemente suscitando desacordos ou hostilidade direta dos outros. Essas respostas não cooperativas reforçam as suposições negativas originais do paciente, o que, por sua vez, leva a um isolamento maior. O "ciclo vicioso" de transferência afetiva só pode ser interrompido pela objetividade profissional, combinada com paciência e respeito compassivo pela limitação do paciente. Essa objetividade surge ao reconhecer o significado e as implicações gerais de seu padrão de sinais interpessoais, de modo que sua comunicação verbal e não-verbal adquira um valor diagnóstico e terapêutico, e não pessoal. 

É recomendável manter uma abordagem centrada na pessoa: deixar que o paciente defina seus objetivos (realistas) de tratamento e, juntos, avaliar a viabilidade de sucesso até que se estabeleçam metas que ambos concordem. Inicialmente, esses objetivos devem ser simples e concretos (como “desenvolver habilidades sociais” ou “reduzir o consumo de álcool”). Em muitos casos, o sucesso nessa fase inicial motiva o paciente a definir metas mais complexas e continuar o tratamento.

Tanto os cuidadores principais quanto os especialistas em saúde mental devem lembrar que existe uma sequência natural de estágios no tratamento de pacientes com TP. Esses quatro estágios podem ser descritos como: (1) manejo de crises e estabilização, (2) despertar de uma perspectiva positiva e valores espirituais na vida, (3) iluminação e (4) inteligência integrada. Cada estágio possui objetivos distintos e exige métodos diferentes. O cuidador completo deve estar preparado para orientar o paciente ao longo desses estágios, sempre pronto para avançar para o próximo quando o paciente se mostrar interessado e preparado para isso.

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O estágio inicial de manejo de crises e estabilização aborda o problema apresentado e os fatores de estresse para ajudar o paciente a alcançar um estado de maior organização psíquica e a formar uma aliança de trabalho com o profissional. O segundo estágio envolve elevar a visão de vida da pessoa, de modo que ela possa experimentar atividades e valores que aprecia em condições de relaxamento. Esse processo inclui um despertar espiritual, frequentemente negligenciado em abordagens estritamente cognitivas-comportamentais ou psicodinâmicas, mas essencial para uma mudança fundamental na qualidade de vida. O terceiro estágio, de iluminação, envolve o aumento da autoconsciência e da capacidade de contemplação, o que eleva os pensamentos, sentimentos e relacionamentos da pessoa em diversas situações. O quarto estágio, de integração da razão e do amor em ação, permite que a pessoa seja madura e feliz, mesmo em condições que antes eram estressantes. Pacientes com TP podem passar por esses estágios por conta própria (ou seja, entrar em remissão espontaneamente) ou ser guiados através deles em um tratamento facilitado por um conjunto cientificamente planejado de exercícios físicos, pessoais, sociais, cognitivos e espirituais.

Na fase de “regulação emocional,” o paciente pode precisar de “contenção” e limites claros, além de se beneficiar da consistência no ambiente de tratamento individual e/ou da união da equipe de tratamento. Recebendo mensagens claras e consistentes, com todos “falando a mesma língua,” o paciente fica em uma posição melhor para experimentar a satisfação de moderar suas próprias respostas emocionais e reduzir o uso de defesas primitivas, como a cisão. Durante a fase de “autocontrole”, o uso de técnicas de coaching (conforme seu significado literal do inglês) e uma abordagem centrada na pessoa ajudam o paciente a assumir a responsabilidade por seu plano de tratamento. Isso é feito através da prestação de contas, estabelecimento de metas, cumprimento de objetivos diários, trabalho em benefício de outros, desenvolvimento de empatia e cultivo de uma visão mais voltada para o outro (alocêntrica) em vez de egocêntrica. Com isso, a tendência de o paciente se ver como “vítima” começa a diminuir e, com feedback positivo frequente, ele cresce em esperança e motivação para a recuperação. Na fase de “autoconsciência”, o paciente é incentivado a ganhar uma nova perspectiva de vida. Isso pode vir de diversas fontes, como o uso de terapia narrativa, tempo em contato com a natureza, meditação e a percepção da interconexão com o universo. Essas práticas ajudam o paciente a encontrar um propósito maior e a desenvolver sua capacidade de livre-arbítrio. 

O paciente pode tentar projetar sua visão de separação no psiquiatra ou na equipe clínica (por exemplo, tratando todas as enfermeiras como “boas” e todos os assistentes sociais como “ruins,” ou vice-versa). Porém, a dedicação e/ou o trabalho em equipe, ao apresentar uma mensagem unificada e coerente, tende a extinguir muito desse comportamento, muitas vezes de forma surpreendentemente rápida. O psiquiatra, frequentemente visto como uma “figura de autoridade,” é essencial para construir a coesão e a coerência da equipe. As chamadas terapias cognitivas da “terceira onda,” como a Terapia Comportamental Dialética (DBT), também podem ser incorporadas ao plano de tratamento nessa fase de desenvolvimento.

Intervenções psicossociais que utilizam diálogo centrado na pessoa podem motivar pessoas que nem pensavam em mudar seu estilo de vida a melhorar seus comportamentos relacionados à saúde, incluindo uma melhor alimentação, a prática regular de exercícios e a redução do estresse. Muitas terapias mente-corpo e de energia, Tai Chi e Qi Gong, promovem a autorregulação, o desenvolvimento do caráter e o bem-estar. Ensaios controlados de treinamento em mindfulness demonstraram uma melhoria no bem-estar associada ao aumento do autodirecionamento, cooperação e autotranscendência. Durante todo esse processo, o profissional de saúde orienta o paciente a observar seu progresso e desenvolvimento de caráter, reforçando a esperança e motivando-o para um círculo virtuoso de melhoria contínua.

É extremamente importante que o profissional entenda que essas "fases" de tratamento são etapas de aprendizado e, assim como os estágios de autoconsciência, não seguem uma progressão linear simples. Em vez disso, o profissional deve enxergá-las como parte de uma "espiral" ascendente de crescimento. Cada fase está interconectada, e o foco do tratamento pode oscilar entre elas conforme o paciente experimenta o amadurecimento de seu caráter e o crescimento no autocontrole. Essa espiral ascendente significa que retornar ao “mesmo ponto” é uma característica frequente e inevitável do progresso. É essencial destacar para o paciente, e para a equipe clínica, que isso não representa um retorno ao “zero”, mas sim um reencontro com desafios conhecidos, agora com uma perspectiva mais elevada e uma nova oportunidade para tomar decisões mais satisfatórias. Os sentimentos de vazio e impotência, tão comuns nos TPs, podem diminuir significativamente quando o paciente compreende e valoriza essa jornada ascendente e as melhorias incrementais em suas habilidades de resolução de problemas que a acompanham.

Uma abordagem útil na fase inicial do tratamento é focar nas principais queixas que trouxeram o paciente ao tratamento. Essas queixas costumam estar relacionadas ao trabalho, relacionamentos e/ou saúde em geral, o que geralmente oferece uma base suficiente para o diagnóstico e tratamento inicial do TP. Por exemplo, uma análise sistemática do desempenho no trabalho, na escola ou nos relacionamentos pode ajudar a identificar atitudes, sentimentos e comportamentos que revelam barreiras ao sucesso e à felicidade do paciente. No entanto, isso pode trazer à tona questões sensíveis que ele prefere minimizar, ignorar ou sobre as quais acaba mentindo e distorcendo.

Uma abordagem inicial alternativa, especialmente se o paciente está começando o tratamento por pedido ou exigência de outra pessoa, é focar em escolhas de estilo de vida saudável. Isso oferece uma base menos ameaçadora para avaliar os objetivos, valores, hábitos e habilidades do paciente (ou seja, sua personalidade). Decisões sobre dieta, controle de peso, exercícios, tabagismo, consumo de álcool e formas de relaxar e lidar com o estresse são temas apropriados para discutir com o profissional e não ameaçam nem estigmatizam o paciente. Essas discussões podem estimular o desenvolvimento de mais autodirecionamento e planejamento construtivo para a vida.

A disciplina em seguir os objetivos escolhidos é um indicador de maturidade. Ter sucesso em alcançar metas, mesmo que simples, aumenta a autoconfiança e frequentemente estende-se para outras áreas de autodirecionamento. A falta de sucesso, por outro lado, levaria à reflexão de dividir um problema em pequenos passos que podem ser realizados um de cada vez. Nesse processo, o paciente tem a oportunidade de aprender com a experiência, algo essencial para quem tem TP. Frequentemente, essa definição de metas e resolução de problemas permite que o paciente admita suas falhas e reconheça seus pontos fortes e limitações. O respeito por si mesmo, gerado por conquistas, exige a aceitação de responsabilidades e leva a uma maior confiança nos outros. Autorespeito e respeito pelos outros costumam progredir juntos. 

O crescimento da autoconsciência (ou seja, aumento do insight e do julgamento) só é possível quando a pessoa está organizada o suficiente para enfrentar e aceitar realidades desagradáveis sobre si mesma. Por isso, a terapia geralmente avança em pequenos passos que levam a maneiras cada vez mais maduras e integradas de encarar e lidar com os desafios da vida. Figurativamente, uma pessoa que se sente assustada, faminta e rejeitada não consegue apreciar a beleza e as maravilhas do mundo enquanto está focada em satisfazer suas necessidades básicas de segurança, alimento e conforto. No entanto, se ela tenta atender essas necessidades de maneiras que vão contra valores e hábitos saudáveis, estará agindo de forma autodestrutiva. Assim, é difícil especificar as condições exatas para o progresso de uma pessoa, pois é necessário considerar tanto recursos internos quanto externos para identificar um caminho em direção a metas pessoais que promovam plasticidade, virtude e saúde crescentes.

Não há "receitas" que garantam os resultados do tratamento, pois o crescimento na autocompreensão depende de processos dinâmicos e não-lineares, como o insight, o julgamento e a capacidade de prever criativamente. O que uma pessoa deseja depende tanto de sua visão de mundo quanto de suas circunstâncias externas. A visão de mundo de uma pessoa influencia o que ela considera importante, significativo e satisfatório. Por exemplo, uma pessoa pode reagir a um desastre com estresse pós-traumático, enquanto outra encontra um sentido na oportunidade de ajudar os outros, crescendo em autoconsciência e bem-estar. De fato, os recursos psicológicos internos, mais do que os apoios materiais e sociais externos, passam a satisfazer cada vez mais as necessidades de uma pessoa à medida que ela amadurece. Pessoas com TPs têm recursos psicológicos internos limitados, por isso sua psicoterapia deve começar despertando valores que promovam o bem-estar e a disposição para buscar maior autocompreensão.

O que os profissionais podem fazer para orientar sua prática é entender os três processos que promovem o desenvolvimento saudável da personalidade e as atividades que ativam esses processos. Novamente, os três processos básicos que interagem para aumentar o bem-estar de qualquer pessoa são: (1) plasticidade (ou seja, a capacidade e a disposição para mudar), (2) virtude (ou seja, ter um insight intuitivo sobre o que é bom para si e para os outros) e (3) funcionamento criativo (ou seja, ser inovador, cheio de recursos, focado e responsável, de modo que seus hábitos fiquem alinhados com os objetivos e valores). O cultivo da autoconsciência e, eventualmente, da autotranscendência por meio desses três processos oferece um caminho que as pessoas podem seguir com liberdade e flexibilidade, usando os recursos disponíveis e recebendo ajuda em seu próprio ritmo para desenvolver uma vida saudável, feliz e satisfatória.

As pessoas raramente se empenham para alcançar metas nas quais não estão pessoalmente interessadas. Por isso, encoraja-se a reflexão e a meditação sobre o que valorizam e a avaliar em que medida agem, no dia a dia, de acordo com esses valores. O estilo de vida moderno tem colocado um foco excessivo em matérias que não trazem satisfação ou benefícios, em detrimento da saúde e bem-estar. Consequentemente, para promover o próprio bem-estar, é essencial praticar atividades que a maioria das pessoas considera eficazes para cultivar a expressão da virtude em suas vidas.

Quando as pessoas não têm clareza sobre o que consideram satisfatório e valioso, pode-se convidá-las, como um experimento inicial de bem-estar, a viver de maneiras características de pessoas com altos níveis de bem-estar. Pessoas com características criativas (ou seja, com altos níveis de autodirecionamento, cooperação e autotranscendência) apresentam os níveis mais altos de bem-estar. Independentemente de suas características iniciais de personalidade, a maioria das pessoas considera satisfatório e benéfico praticar atos de amor, esperança e fé, como descrito na psicologia positiva, por meio de atos de gentileza ou gratidão, pois isso as estimula a descobrir o que realmente valorizam.

Essas práticas virtuosas podem ser amplamente descritas como: (a) trabalhar em benefício dos outros (como praticar atos de bondade, que expressam um entendimento do amor); (b) deixar ir (como abandonar ressentimentos e conflitos internos e externos, o que reflete um entendimento da esperança) e (c) crescer em consciência (como cultivar a fé em aspectos que não são tangíveis ou comprovados objetivamente, por exemplo, através da meditação para desenvolver serenidade, atenção plena, insight e julgamento imparcial, o que reflete um entendimento de fé e uma aceitação humilde das imperfeições humanas). Além disso, é útil ensinar as pessoas sobre os processos de pensamento para que se tornem mais conscientes dos preconceitos que influenciam suas percepções, intenções e valores e, assim, possam reduzir as interferências em seu funcionamento.

By DALL-E


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Por Décio Gilberto Natrielli Filho


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